quarta-feira, 23 de junho de 2010

Aline brinca hoje com a menina Jesus

Poderia dizer que Aline Luz Mendonça começou sua carreira junto com a ditadura militar brasileira, em 1964, no Rio de Janeiro.

Poderia dizer que no primeiro ‘Showçaite’ de Theodomiro Paulino, Aline e Magnos Medeiros foram lançados como dupla (na época de “Dois na Bossa” de Elis Regina e Jair Rodrigues). E que viajaram por diversas cidades da região.

Poderia dizer que Aline foi a cantora que conseguiu fazer Caetano Veloso compor uma música exclusivamente para Montes Claros.

Poderia dizer mais, muito, mas muito mais.

Acontece que Aline era luz, era o nada e era o tudo, uma simples menina que amava a natureza, o sertão, a música, a humanidade.

Filha de meu dentista Sebastião Moreira e, poderia dizer, da florista Josefina Mendonça, Aline enfrentou barras e barreiras em toda a sua vida. A primeira, a ditadura imposta pelos militares em 1964. E a seguir outras tantas, como o preconceito e os limites impostos pelo mundo. Mundo radiofônico, principalmente.

Aline, que é mãe de Darlan e Joana, além de tantos outros filhos como eu, Élcio Lucas e Joba Costa, nos deixou de herança não só a Música Popular Montes-clarense, mas muito mais que seus três elepês e um compacto simples mostram. Descortinou um novo modelo de canções, seguido por gerações passadas, presentes e outras que hão de vir. Deixou horas e horas gravadas em fitas que, quiçá um dia sejam digitalizadas, para podermos continuar a ouvir sua voz, sua bênção, seu sinal, seu caminho. A comparavam com Bethânia. De Maria Bethânia nada tinha, é bom lembrar, embora haja uma vaga lembrança. Tão vaga que não dá para seguir o fio da meada.

Um dos legados de Aline Luz, entre tantos, foi sua garra de viver num sertão como este, apaixonada que era por João Guimarães Rosa e sua gente. Tanto que fez dele um projeto de vida: percorrer os caminhos do escritor mineiro. Não conseguiu, infelizmente. Pode ser a sina de quem nasce neste nortão de Minas, como sempre lembra o compositor e cantor Pedro Boi.

Ambientalista nata, foi presidenta do Codema - Conselho Municipal do Meio Ambiente de Montes Claros durante vários anos e autora de inúmeros projetos de proteção ambiental sustentável, efetivando estudos de campo através de sua militância no GEA – Grupo de Estudos do Ambiente. E melhor: juntou a literatura de Rosa à necessidade de desenvolvimento sustentável para o Vale do Peruaçu, onde deixou elaborados projetos de qualidade e sustentabilidade.

Me lembro ainda. Foi numa noite em 1973, num domingo a noite, que Aline nos deu a imensa honra de entrar em nossas casas através do programa Fantástico, da Rede Globo. Cantava “Viva México”, do seu disco (um compacto simples) recém-gravado pela RCA. Passaram-se os anos, a RCA não investiu em sua carreira e ela fundou a Companhia Vento de Raio. Em 1979 aparecia o primeiro fruto, o LP “Aline”, que tinha como paraninfo o escritor e compositor Aldir Blanc. Na cozinha, fazendo o dicumê, nomes como Toninho e Lena Horta, João Bosco, Hélvius Vilela, entre muitos.

Ela dizia à época que esse LP não cabia numa ficha técnica ortodoxa, porque todos excederam as funções. Um técnico – Toninho Barbosa – que de repente arregimenta, ajuda e produz e, mais que de repente ainda, é um amigo velho. Ou numa emergência, um dos mitos dos bailes da sua adolescência, Ed Lincoln (foi no estúdio dele que ela colocou voz em “Negação”), sem nunca terem se encontrado, faz mais do que o pedido. Muito mais. Para Aline, foi isso aquele LP: um disco onde todos foram mais do que o pedido. Assim era Aline. Luz!

Nele, canções inesquecíveis: ‘O Cavaleiro e os Moinhos’, de João Bosco e Aldir Blanc; ‘Amo-te Muito’/’Amo-te - mesmo? – Muito’, de João Chaves e Caetano Veloso; ‘Vento de Maio’, do Telo e Márcio Borges; ‘A Carta’, do Tomzé, ‘Meu Amor Não Sabia’, Ivan Lins...

Aldir Blanc diz que nunca era demais ressaltar as peculiaridades da carreira de Aline, porque são comuns a numerosos artistas brasileiros. Para aqueles que acreditam no jeitinho em lugar da batalha, o trajeto de Aline assusta. Foram anos de carreira, dezenas de oportunidades aparentes, chances falsas, incontáveis promessas. E, no entanto, Aline ficou todo esse tempo sem conseguir fazer seu disco. Com certeza por culpa desses extraordinários critérios vigentes nas gravadoras multinacionais, os mais confusos e esotéricos possíveis. Atrás das pomposas fachadas de “Departamento de Marketing” e outras histórias para boi dormir...

O segundo disco saiu em 1982. “Uma Face, Outra Face” tinha participações de Maurício Tapajós, Aldir Blanc, João Bosco, Tomzé, Gonzaguinha, Sueli Costa, Toninho Horta, Rita Lee, Vinícius de Moraes, Tom Jobim... ‘Ôrra Meu’ invadiu as emissoras de rádio. Em Montes Claros a 98,9FM, do Paulinho Narciso, produziu com ela seu primeiro programa especial. Numa entrevista regada a uma boa pinga Viriatinha e queijo provolone, com presença de Georgino Jorge Jr. e Félix Richard, ela se abriu e revelou a doçura que é. Foi colocado no ar um dia antes do show que ela apresentou no estádio José Maria Melo. No repertório, o rock de Rita Lee, a seresta montes-clarense, o melhor da MPB, coisa mais maior de grande. Quanto mais o tempo passa, mais eu quero me divertir, me despir, me sentir guerrilheiro, forasteiro... Ôrra meu!

Depois deste LP, a volta às origens sertanejas. João. Rosa. Grande Sertão. Veredas. Os mares de Minas. A travessia com Toninho Horta, Beto Lopes, Hélvius Vilela, Bernard Aygadoux. Voltas e revoltas pelas cidades do Norte. Em Janaúba, um show inacreditável na rua, com o vento de maio. Por Januária, São Francisco, viagens sem destino pelo sertão. E o disco ‘Mares de Minas’: Sueli Costa, Capinam, João Bosco sempre, Silvio Rodrigues, Élcio Lucas, Yuri Poppof, João Chaves. Será que, amando é que nos estamos movendo adiante, num mar? perguntava. O disco, gravado entre julho de 1985 e janeiro de 1987 tinha a capa o óleo de Raymundo Collares.

Dedicado ao pai que na noite do sertão apontava estrelas e ensinava seus nomes. E contava as lendas gregas que deram nome ao brilho de cada uma. Hoje, Aline Luz faz parte do brilho, como seu nome já mostrava, estrela que virou. Também no céu.

Assim era (e é) Aline. Mostra o que há de melhor, revela excelentes compositores que estão aí pela vida, a tocar, a cantar e viver, coisa que ela não poderá mais fazer neste mundo.

Aline Luz poderia ser lembrada como a guerrilheira do amor, como gostava de dizer o jornalista e poeta Eduardo Lima. Era uma guerrilheira em defesa da qualidade da música. Era a própria música, o instrumento musical.

O radialista Gélson Dias sempre disse que Aline nasceu para a arte num momento em que a arte não estava ao seu alcance. Na verdade, ela estava à frente da arte. Era uma cantora com know-how do sertão. A música para ela era como brincar de roda. Iluminada, inteligente, fazia o diferencial por ter uma percepção do mundo. Tinha a facilidade de perceber as coisas belas do mundo e em transformá-las em poesia, em canções.

Para muitos, ela é a maior cantora montes-clarense de todos os tempos. Aquela que quebrou as barreiras que se impunham à nossa música, fazendo com que alçasse vôo, levando o nome da cidade para a arte e a cultura. Houve um tempo em que sua música passou a ser a própria vida. Costumava dizer que não queria ser platéia, que não queria ver a vida passar. Queria ser parte da trupe que encenava o projeto da realidade da vida em sua cidade, seu estado, seu país. Conseguiu.

Não é só como precursora da música montes-clarina que Aline também deve ser lembrada. Ela resgatou do ostracismo gente como o compositor Tomzé, hoje novamente figura conhecida internacionalmente. A canção gravada era ‘Menina Jesus’, uma critica social.

Bença mãe,

Deus te faça feliz

minha menina Jesus

e te leve para casa em paz.

Eu fico aqui carregando

o peso da minha cruz,

no meio dos automóveis.

Mas vai, viaja, foge daqui,

que a felicidade vai

atacar pela televisão

e vai felicitar felicitar

felicitar felicitar felicitar

até ninguém mais respirar

Acode, minha menina Jesus

Minha menina Jesus

Minha menina Jesus, acode!

Agora, juntas, devem estar brincando de pique, em algum lugar entre as estrelas...