quinta-feira, 29 de julho de 2010

Apenas garotos (No mundo da rua II)

As imagens ficam na cabeça da gente. Jimi Hendrix coloca fogo em sua guitarra em Monterrey, naquele surrealismo púrpuro; Janis Joplin vomita seu amor nas canções em Woodstock; David Bowie, glitter, glam, luz, brilho. Tudo e nada ao mesmo tempo. Pensa-se em guardar tudo: a idade, o sonho, o amor, a alegria mortal de uma metáfora. Impossível!

Os dias que são passado, vão indo em fila para o sertão, mas o amor é que é o destino verdadeiro. Eu era apaixonado por Marta naqueles anos dourados da vida, belezas, dores e alegrias que passaram como um som. Era meu sonho, meu amor, minha vida, meu caso, contigo eu me caso, pensava, curtindo delícias, querendo, sabendo, vivendo em paz. Mas o destino era outro.

Eu ficava no mesmo quarto que Rays, que gostava de dormir ouvindo canções madrugada afora. Ele tinha um radinho de válvulas e a música vinha sempre misturada com os ruídos da estática. Ali escutava, à noite, músicas que faziam a cabeça do mundo.

Foi naquele quarto também que vi os anjos pela primeira vez. A memória pode até falhar, mas não falta. Um dele era alto e brilhava como nácar, iridescente. As luzes se manifestavam de várias cores. Rays disse que vi a deusa Venus, criada pelas espumas do mar. Eu acho que o vi. Acho não, tenho certeza.

Foi o verão em conheci o mundo depois de Montes Claros aquele de 1973. Antes, havia viajado até Ouro Preto para um Festival de Inverno onde comi batata portuguesa amassada com arroz durante 30 dias, tomando batida de limão para esquentar o frio. E quando mais criança, Guarapari, no Espírito Santo, Guanambi e Lapa do Bom Jesus, na Bahia. Belo Horizonte não contava. Mesmo naquelas intermináveis viagens de trem. E o Norte de Minas era meu quintal.

Pois foi sentindo na pele estas reações que decidimos sair on the road. Era o verão da paz e do amor. O início da década de 1970 era os anos da mudança. E foi aquela viagem inesperada que mudou de fato o curso da vida daqueles 4 rapazes. Para sempre. Afinal, vocês ainda se lembram do futuro que a gente combinou?

Éramos apenas 4 garotos, como os Beatles ou os Rolling Stones. Cantávamos ‘Like a Rolling Stone’ com Dylan , como se quiséssemos entrar para a banda, como se fôssemos um rolling stone, uma pedra que rolava e nunca criava limo. “Deve ser ruim não ter onde ficar, completamente sozinho, como um pedra a rolar...”

Tínhamos uma troca mútua de influências artísticas e companheirismo. Sonhávamos, ingenuamente, com um futuro melhor. O coração ficou numa casa da rua João Souto, enquanto o corpo seguia em frente. Quanta saudade!

Primeiro foi Pedra Azul, mas depois dali, quantos caminhos ainda poderiam se dividir a frente? Depois daquele festival, do Woodstock tupiniquim na distante terra de Saulo Laranjeira, pé na estrada rumo a Salvador.

Não tínhamos uma ‘Route 66, mas a BR-116, a Rio-Bahia. Era tudo que eu, Udo, Washington e Ricardo Xarope precisávamos para a road trip. Alik Poppof e Wellington Vieira retornaram a Montes Claros.

Não sabia muito bem o que iria fazer lá. Mas naquele tempo dizia-se muito em colocar o pé na estrada, dar o fora, drop out. E fomos para Salvador, onde imaginávamos estar o novo Woodstock brasileiro, que havíamos deixado para trás. Na cabeça, o encontro com motoqueiros, trailers com famílias hippies, beatniks, artistas, aventureiros como nós. Nada disso, na verdade, acontecia. Mas tínhamos as rédeas do nosso tempo e, principalmente, a sensação de liberdade. Que faltava no país naquele momento.

Depois de andar 18 quilômetros naquela estrada poeirenta de Pedra Azul até a BR, eis nossa ‘Rota 66’. E caminhar, conversar, falar de tudo um pouco, perambular pela estrada, lembrar do amor que ficou tão distante, aprender a viver com o perigo que poderia estar na próxima curva, aquela loucura que aventura a estrada e a estrela da manhã, inspirar na natureza, criar coragem, até conseguir carona.

A primeira não demorou. Foi num caminhão que transportava pneus de trator. Os 4 foram lá, deitados, tocando violão e curtindo o sol, até chegar à tardinha em Cândido Sales, na beirada do Rio Pardo. E que saudades do nosso Norte de Minas, vendo aquelas águas passarem. Novas recordações, o rio corre manso, rio que acompanho com os olhos vazios. Estamos fora de Minas, estamos indo atrás das geraes do Brasil. Dormimos numa escola, num junta-junta de bancos, que mais doía as costas do que fazia descansar. No outro dia, madrugada. Olho o dia nascer sobre as montanhas baianas, a Serra Geral de Minas que ali continua, mas não vejo um mesmo dia. Os dias são muitos, vários, entrelaçados num só dia. Café com pão e caça à carona nos postos de gasolina.

A estrada pela frente, retas que não acabam mais, passando por Veredinho e chegando a Vitória da Conquista. Ali, a dúvida. Vamos seguir em frente ou visitar o tio do Udo, Bado e dona Fia, em Caculé?

Vamos fazer arte nos lugares que estivermos a fim de ir. O nomadismo hippie nos leva pelo vento, para ser devorado na próxima esquina. Ou virar anúncio de inseticida. Mas que tal antes uma chegada a Barra da Choça? Pra que? Ver o final da tarde, a noite cair no árido chão. É como se as montanhas caíssem... Alguém já havia me falado disso. Meu pai?

No outro dia, pé na estrada, seguindo nossa rota, para descortinar o novo e, quem sabe, uma cidadezinha saída de filme de caubói... Era nossa viagem de contestação ao American Way of Life (ou Ditadura Way of life?), como no filme Easy Rider. Mas não estava embalada por uma trilha sonora inesquecível como a daquele filme. Nem tínhamos a atuação de um bêbado como Jack Nicholson. Embora encontrássemos vários bêbados pelo caminho. E equilibristas da vida.

Talvez fosse a inspiração da música que o Tino Gomes e Valmir Melancolia ainda fariam. Fomos embalados por ela: Venho descendo serra, passando ponte neste temporal... E as cidades vão ficando para trás: José Gonçalves, Planalto, Poções, Manoel Vitorino, Boaçu.

Em Jequié, novamente uma noite para dormir. No jantar, melancia roubada na feira. Relâmpagos assustam a calma das sombras. Estávamos longe de casa, entre montanhas, rios e gado. Além de pernilongos. A saudade ainda bate no coração enfermo. Saudade de um abraço, de um beijo, daquele colo de amor, amigo.

Dia seguinte, mais caminhar, descortinar paisagens, a alma da ave, da ave que voa, é a alma do homem, do homem que voa. E lá vem carona para Baixão, uma passadinha por Jaguaquara e Itaquara, seguir caminho por Irajuba, Milagres, Itatim, Paraguaçu, Santo Estevão... E olha lá Feira de Santana! Estamos chegando... Aqui e agora, ontem, hoje, o amanhã. Qual o que! Tem Coração de Maria, Amélia Rodrigues, São Sebastião do Passe, Candeias, Simões Filho. Mas leve, como leve pluma, muito leve, leve pousa: é Salvador...

E Madre de Deus, por que não? Fica para depois...

Salvador a tarde, sujos, na carroceria do caminhão, parecia o céu. Ou o céu parecia Salvador? A vontade de mexer, remexer, colocar, tirar, provar. Terra em transe.

Chove. E faz chover. Talvez chova em Montes Claros também. Na vidraça da sala, no sonho, ela a escutar Caetano ou Carly Simon, deve lembrar de mim. Nas ruas, em ruas encharcadas, amores que se molham. Num canto, perto de uma praia onde só se ouve o barulho do mar, tento, na ponta do lápis, traçar o mundo e estar ao seu lado.

Foram dias de nadar na lagoa escura do Abaeté, andar no largo do Pelourinho, minilapidar o Farol da Barra, o dique de Tororó, o largo da Ribeira, o largo da Santana, a conhecer aquela mistura de ritmos, dos passos, do sangue, de baianas.

Ficávamos muito na praia de Itapuã. E íamos a Arembepe vez ou outra, onde encontramos hippies. E pescadores. Era um mundo virgem. Um dormitório a céu aberto. Fazíamos pequenas coberturas que nós, agora hippies de fato, ficávamos. Um dia nos levaram para o rio Capivara, onde uma lagoa nos esperava. E peixe assado... A tarde, o corpo cansado em busca do teu abraço. Nada. Ele esta tão longe.

Arembepe era o sossego. Não havia energia elétrica, uma brisa constante vinda da África. E águas transparentes. Sentia-me como se sempre morasse ali, observando os nativos que vivem – ainda hoje? - com calma e simplicidade. Por lá já haviam passado Mick Jagger, Roman Polanski e Janis Joplin, Tom Zé, eu, Udo, Washington, Ricardo Xarope e os Novos Baianos. Os velhos baianos estavam ao nosso lado. Era uma beleza de local. Como dizem os poetas, como Helena Kolody, “rezam meus olhos quando contemplo a beleza. A beleza é a sombra de Deus no mundo”.

Em Salvador, dormia todo mundo embolado, muita gente dormia no chão. Os baianos eram acostumados a chamar a gente para dormir nas suas casas. Andando pela praia, encontrava aquele pessoal, batia papo, eles perguntavam onde a gente estava, de onde éramos com aquele jeito sertanejo, lugar nenhum, soltos, pelo mundo, e nos levava para casa. A casa ficava entupida de gente, já que iam outros e mais outros. A Bahia de todos os santos.

Não voltei a Arembepe em 1987, quando retornei a Salvador com minha mulher Inês. Fomos a Itapuã. E foi uma emoção muito forte ver aquela praia de novo. Procurei batida de cambuí e erva-doce, não encontrei. Comemos galinha de xinxim, fomos a Enseada das Labes, ao Bargaço e Berro D’Água. Salvador é muito bom. Rejuvenesce a gente. Está na hora de retornar.

Arembepe pertence a Camaçari, uma cidade-fábrica, que conheci em 1987, apresentado por Fatinha. Vi Salvador de uma maneira que não conhecia, já que em 1973 estava deslumbrado, desbundado. Naquele 1987, olhando do elevador Lacerda me extasiei com a baía de todos os Santos mais e mais ainda. Mas a vida da cidade continua tão tranqüila, sem transtornos. E lá se vão mais de 20 anos... Ah! Meu Deus, tantos adormeceram. Daquela viagem de 1973, quase 40 anos atrás, restaram eu e Washington para contar a história, que ainda não acabou.

Daqueles anos 1970, também adormeceram as comunidades de Arembepe, as Dunas do Barato, os Novos Baianos, o inverno em Ouro Preto. A era já era.

Existiram ali sentimentos, que morreram no caminhar dos anos. Ou estão guardados. Ou transmutaram. Ou serviram de base para outros.

Aquele início dos anos 1970 marcaram para sempre os 4 duendes. Aquela viagem inesperada mudou de fato o curso da vida daqueles rapazes. Soltos na aventura, ventura divina de ser, ligados na comunhão do som, abrindo os poros para a mágica sempre presente. O deslumbre e a descoberta. Que do bolso de cada um dos 4 como num teatro voem pombas (pombas brancas)... E amanheça.

Hoje, cheiro o perfume das rosas que tantos anos atrás não tinham cor. Dia destes, deitei-me e liguei o radinho. Era uma noite de mau tempo, chuva forte. O ar estava carregado de eletricidade, que o rádio expunha sob a forma de ruídos, estática, assobios. Lá no fundo dava para ouvir “Bolero”, de Ravel.

Eu apenas cantarolei ‘Mudaram as estações/ nada mudou/ mas eu sei que alguma coisa aconteceu. Está tudo assim tão diferente/ mas nada vai conseguir mudar o que ficou...