sexta-feira, 22 de abril de 2011

I will be there

O pulso ainda pulsa
E o corpo ainda é pouco
Ainda pulsa
Ainda é pouco

Dava a impressão de um barco com todas as velas enfunadas. Estava frio, ele usava seu chapéu de duende e dava ordens. As coisas tinham um jeito de funcionar sempre para melhor. Sei que a manhã estava em andamento. Fiquei entretido no buscar da minha veia, e perdi qualquer noção do tempo, a mente ocupada apenas com o sono repentino. Não sei se foi sonho. Acordei às voltas em endireitar o corpo para amenizar as costas doloridas. Foi só isso aquelas oito horas. Nada para lembrar. Isto aconteceu em 2009.
Nesta semana li no obituário da Folha a morte do humorista e radialista Sergio de Souza Leite, o Serginho Leite. Conheci sua obra ainda nos tempos da 98,9 FM, nos anos 1980. Ele lançou Criser, uma versão genial de Thriller, do Michael Jackson. Mas a música foi proibida pelo Departamento de Diversões Públicas da Polícia Federal. Nesta semana, teve um infarto do miocárdio.
É a vida.
Mas ela é bonita, é bonita e é bonita, como ensinou Gonzaguinha.
E a vida vem no pensamento. Podemos ter nossa casa atual, do jeito que queremos. Mas a futura, queira ou não, será junto a terra. Não tem escolha. Que seja no cemitérios dos Paus Pretos, da Malhada, Bom Fim... Ou num cantinho gostoso, debaixo de árvores, numa fazenda qualquer. Talvez a São João, de Zé Grande. Pois tinha tanta luz naquele céu da fazenda São João, que fica lá pelas beiradas da Lagoinha, que às vezes até passava um avião enquanto a gente cantava pra lua. Da fazenda São João a gente via um por do sol deslumbrante, naquele céu bonito de lá. Aquela terra, aquele rio que, de tão pequeno era profundo em nós, fica grudado na memória. Lá seria um bom lugar para se viver a eternidade.
Afinal a morte é a única experiência comum, não importa a raça, o país em que vivemos ou nossas crenças religiosas. É a única coisa que compartilhamos.
E não manda aviso. Ou, às vezes, até manda. Mas nem todos percebem.
E quando vai se ficando mais velho, com o passar de anos e anos, as lembranças ficam maiores e as perspectivas, menores. Mas as agonias de quem está perto dos 60 anos são maiores daquelas dos jovens de vinte e poucos anos? Sei não...!
Quando você atinge certa altura, tem aquele começar de novo, e tem o continuar.
Não existe volta, existe a continuidade das coisas.
Quando se faz 20 anos, o mundo é ali na esquina. Vive-se tudo, convivendo com a morte ao lado.
Quando se faz 40, deslumbra-se com um recomeço. A gente dá uma zerada, quer fazer isto e aquilo. Começa a se sentir maios poderoso para fazer as coisas, mais forte para se aventurar. Deixa pra trás aquilo que enche o saco, guarda no porão coisas e cousas. Aquilo que já cansou. Aos 40, quer alçar novos vôos, escrever, viver.
Aos 50, cinquenta e poucos, já é diferente. Mesmo querendo zerar tudo, já não tem muito tempo para fazer as aventuras desejadas. Quer apenas ficar perto da família, curti-la o melhor possível.
É o clichê da vida: quando se envelhece, a gente perde o garbo, pega mania boba, como de não fazer planos para o futuro, a longo prazo. Fica triste de repente, sem ter o que nem o por quê. Adota um ritmo mais lento com o passar dos anos.
E a morte é que é por conseguinte. A gente morre para provar que não teve razão, ensina João Rosa em “Os chapéus transeuntes”, de Estas Estórias. Pois!
Na época dos santos, eles morriam com antevisões do Paraíso. São João da Cruz, na noite da sua morte disse: eu cantarei as matinas no céu. Santa Tereza de Ávilla morreu sussurando: chegou, enfim, a hora, Senhor, de nos vermos face a face. São Francisco a recebeu com os braços abertos: seja bem vinda, irmã morte. A morte ideal na época dos santos era acompanhada do transe místico.
Morte ideal no século XXI é a repentina, sem dor, sem remédios, sem UTI. Tão repentina que poupe até a consciência de quem está morrendo.
Mas as pessoas não morrem, ensinou Rosa: tornam a ficar encantadas.
Mas onde está encantados o Escolástico? E o Celso? Ruy?
Será que estão segurando a mão de Deus?
Eles subiram cedo? Tarde? Tem hora?
Afinal, curtir a vida é quase que uma obrigação de quem respira.
Onde está hoje Mércio, Catulo, Zé Grande, Fidelcino, Waltinho, Acácia, Rays, Maria e Eugerson?
Foram magicamente transportados para um outro mundo maravilhoso, cheio de entidades encantadas.
Vão voltar, como prega o espiritismo? Pois!
Deus nos deu a graça de só morrer uma vez, disse Padre Vieira. A ressurreição, para São Paulo, seria a eternidade, ir para um mundo sem atribulações. Afinal, não somos super heróis, apenas passamos no tempo. E um dia, vamos partir para este além.
O além?
Existe um mistério indevassável sobre nosso destino após a morte. É nosso limite.
Mas pode deixar, i will be there.
Eu estarei lá!
...
Benjamin, Márcia, Nilde e João estavam no cemitério do Bom Fim dia destes. Maria, que não estava junto, ficava a imaginar.
Afinal, cemitério é um lugar tranquilo, ótimo para formular histórias, como as contadas certa vez pelo filho do Seu Ducho. E melhor ainda para imaginar a vida das pessoas que estão ali, ao seu lado.
Pena que em Montes Claros, vândalos roubem tanto as placas, cruzes e até fotos ali colocadas. Não há guarda? Acredito que só as guarda os do outro lado, mas que nem assustar sabem.
Benjamin, Márcia , Nilde e João vão andando pelas ruelas do campo santo. Deixam ali Eduardo Nery, que tem uma profunda desconfiança de si mesmo. Não sabe se está desencarnado e caminha entre os vivos, ou se está ali, vivo, conversando com os mortos.
Razão e sensibilidade.
A carne e o espírito...
Pois!

Sex in the Moc

Leya Bloodymary nunca usava calcinha. Era uma pureza de pessoa. Passou maus momentos quando estudava no Colégio São José, logo quando as meninas entraram no refugio dos meninos. Como gostava de escorregar no corrimão da escada, era a garota que todos queriam... Menos os irmãos maristas. Recebeu broncas de Irmão Ladislau. Também trabalhou certo tempo numa firma de tratores. Era a atração quando, após o almoço, se sentava numa mureta, com a saia curta. Os mecânicos não deixavam de passar a sua frente. E ela se divertia intimamente.
Uma vez, viajou para Londres, onde ficou quase um ano. Voltou dizendo ter conhecido um cara sensacional, que escrevia letras para Raul Seixas. Era um tal de Paulo Coelho. Disse que o namorou durante algum tempo, inclusive vivendo em sua casa. E junto com a esposa, Cissa. Todos juntos, numa cama só: ela, Paulo, Cissa e Peninha. Coisa da sua cabeça? Ninguém sabe.
Criativa, ousada e, particularmente, em paz com a vida, L.B. é assim, com aquela cor de jambo e pecado. É o personagem do meu filme de memórias que o vento levou e o tempo traz. Também gosta de magia, alquimia e astrologia. Não nesta ordem. Mas antigamente queria manipular os astrolábios, ler as estrelas, dominar a natureza, decifrar segredos.
Não sei por que, sempre a encontro pelas ruas. Ontem mesmo, passou pela Santos Dumont. Está mais alegre agora, e me conta ou relembra casos do passado. Afinal, ela é uma mulher aventureira, uma mulher do mundo.
A poucos dias, fui à casa de L.B. Naquele local, ruídos dos ônibus, a gritaria das pessoas na rua, o desacerto arquitetônico da área central, nada a faz desconcentrar. Me recebeu sorrindo, aquele sorriso travesso. Ali há um cheiro no ar, roupas usadas penduradas numa bicicleta ergométrica, latas de tinta abertas, uma tela meio que pintada, meio que borrada. Será que ela agora virou artista, penso, comigo mesmo. As portas estão escritas a caneta. Na do quarto, está a letra de “Amor, meu grande amor”. Na do banheiro, Joana Francesa e Ne me quitte pas.
Numa prateleira, livros. Muitos. Alguns títulos me chamam a atenção: “120 Dias de Sodoma”, do Marquês de Sade, “O Doce Veneno do Escorpião”, de Raquel Pacheco... tem Henry Miller, Cassandra Rios e a coleção de Carlos Zéfiro. Tem Charles Baudelaire e Paulo Coelho, Augusto José Vieira Neto e Carlos Drummond de Andrade. Me interesso por Mulheres de Charles Bukowski. Pego e abro numa página qualquer. Leya abre a janela e o sol de fim de tarde do verão montes-clarino entra, trazendo vida àquela parte da quitinete. Numa mesa, reparo uma faca e casca de laranja, já seca. Ao lado, um enorme dicionário Aurélio. Diz ser ali seu refúgio, onde conversa com as almas, medita, sonha com tempos antigos e aqueles que têm pela frente. E ama. “Tem um velho louco e safado aqui do lado”, diz, com voz carinhosa. “Ele bebe demais!”. “E você?”, ouso perguntar. “Sei lá. Uma garrafa de vinho, algumas cervejas, um uisque...” O cosmopolita passatempo etílico ainda continua, quando vai ao bar do Joaquim. Quinta no Quincas, doces lembranças. Toca música clássica. Ravel. Só podia. Revistas sobre uma poltrona vermelha. No chão, ao lado da cama, “Hustler”. “É um imã para os homens”, diz com o sorriso maroto. E olha que ela foi educada segundo as severas regras protestantes. E tinha um pai comunista.
Hoje com seus anos um pouco passados, ainda canta “não acredite em ninguém com mais de 30 anos”, enquanto toma banho. Seus olhos, quando canta, tem o olhar de um azul profundo, o rostinho de anjo. Enganador. Não me pergunte como sei. Ela continua livre, inteligente, ousada, verdadeira. E nos transfere sua paz. Seu amor.
Uma vez, L.B. resolveu usar uma cabeleira fake e falar com uma voz monótona. Neste dia, ela teria um encontro lésbico. Nunca falou o que rolou. Mas rolou, pois sua cara, no outro dia, era de traquinagens. Agora, anos depois, pergunto como foi. Responde apenas que M.T. conhecia aquela palavra que, quando pronunciada, faz com que uma mulher apanhe uma flor e a coloque no cabelo. Nada mais foi dito. Nada mais precisa ser. Para bom entendedor...
Leya é uma filósofa-gata. Sem tradução. Vem de uma família de esquerda. Seu pai militou no Partidão, e um tio foi preso pela ditadura. Namorou um guerrilheiro de araque, destes que se vê ainda hoje falando da luta armada contra a ditadura, sem nunca ter apanhado uma arma. Talvez apenas tenha visto, de longe, a capa do Livro Vermelho do Mao Tsé-Tung.
Não se envolveu com atividades estudantis na faculdade. Namorou um holandês seis anos mais velho, que lhe deu uma visão da vida européia. A ensinou a falar francês e inglês, a vestir, a comer, a ter certa sofisticação. Com ele descobriu sua sexualidade e seu medo da Aids.
Na nossa conversa, lembra que se esbaldou durante anos no bloco Biô e Salomé, frequentou o Bar Sibéria, na esquina da Dr. Veloso com Presidente Vargas, só para beber vodca com coca, bater papo com Virgílio de Paula e Biô Lopes. E conversar com “Seu” Luis, falando sobre a época dos picolés de groselha, vermelhos, redondos. Seria provocação? Fala sobre Vicentinho da Pavisan, de Toninho, irmão de Carlinhos e Dequinha, e das guloseimas do bar dos japoneses Manoel e Joaquim, no boteco da Dr. Veloso com Tiradentes.
Me vem à memória que Leya Bloodymary tinha uma estabilidade emocional que dependia tanto de uma relação sólida, de um homem que a ajudasse a enfrentar as tempestades da alma, como de uma cachacola na esquina. Às vezes, entrava em depressão, ficava melancólica.
Nunca lhe faltaram (nem faltam) homens, é bom acentuar. Ela suga suas energias. Às vezes trepava (trepa) muito. É quase uma mulher-vampiro para seus homens. Uma predadora erótica? Ah! Como se lembra de Lucrezia Borgia... Naquele quarto, os gemidos, os sussurros, onomatopeias... Ai! Laralarilás. Gosta de brincar de gata e rato. Uma loba no cio, uivando pra lua. De mel! Bem lembrou Jorginho Santos na canção Safari. Foi onde o leite e o deleite se encontraram.
Na sala, ela coloca Caetano. O som de “Sozinho” enche o ambiente. Sentada no sofá ao meu lado se encosta, enrosca, parece pedir proteção. Usa minissaia, os cabelos estão molhados do banho, desgrenhados, a boca rósea e um par de pernas suculentas. Se põe a tecer a crônica sexual da vida alheia – e própria. “Já escutou Estrela Reluzente, do Zé da Gota?”, pergunta. “Não!” “Aqueles versos foram feitos para mim”, e canta “somos peças do mesmo jogo, somos amantes da mesma ilusão”. Cantarola quanto tempo leva para aprender que uma flor tem vida ao nascer. Diz estar viva, ressuscitada, há movimento em suas carnes, os sonhos esquecidos estão a sua volta e os desejos proibidos aparecem na superfície de sua pele. “Será que estas suas mãos ainda sabem abraçar e acariciar meu corpo”, interroga.
Leya Continua sem conseguir segurar um afeto. Continua um personagem dramático. Continua com pêlos tremendo ao vento ateu. “Tiau, Bodanzky!”, digo, num sussurro, saindo devagarzinho. Ela parece dormir com as mesmas pausas, reticências e silêncios.
Lá fora, olho e revejo o Cine Montes Claros. Da Praça Dr. Carlos vem o som: Será por quê? Será por quê? Será por quê? Nem o senhor porquê sabe responder.
Ah, Santoro...!

Anarquista? Sim, graças a Deus!

Nossos escritores têm pudor do sucesso. Não topam seduzir um público grande escancarando o coração, sem culpa e vergonha, sem medo da catarse. Amelina Chaves não tem medo, nem qualquer problema para seduzir o leitor. Nem o de puxá-lo pela corda direta do coração. A doçura é uma constante em seu trabalho.
Dizem que ela é do tempo do cafona, do kitsch. Que nada! Mel, se assim posso chamá-la pela doçura de ser o que é, é de antes de existir qualquer definição. Ela já era lida desde quando as penteadeiras das putas e o jukebox existiam, embora não mostrasse tais escritos para qualquer um.
Conheci Mel quando estava no Diário de Montes Claros, no inicio da década de 1970. Um dos seus primeiros escritos saiu na Káthedra, revista de cultura daquela época. Junto com Felipe Gabrich, íamos comer peixe e beber uma cerveja em sua casa (ainda a mesma de hoje), nas tardes noites de sexta-feira, quando uma bruxa boa atormentava uma de suas filhas. De lá pra cá, cresceu ainda mais, escreveu, lançou livros e livros, e posso dizer ser a maior romancista da atualidade neste Montes Claros da vida.
Quando escreve, ora afoga as mágoas de amores nos braços de outros, sem pudor de se assumir traída - por quem? pelo personagem? -, ora é a gostosona de plantão. Escreve sobre a linguagem viciada dos centros, a saudade mal cozida dos bairros e a carência aguçada da periferia.
Pela definição de Elza Pound, Amelina, antes de ser a escritora consagrada que é para nós, seria uma espécie de inventora. Captura vertente da infância, mistura o figurino com o despudor da auto-ironia e da chacota. Escreve lindamente, amelinamente, amelindamente, sobre tudo. Lembro-me da gestação de “Diário de um Marginal”, que saiu em 1979 e do “Andarilho do São Francisco”, de 1981, dedicado à Mestra Antoninha, ao velho Antônio, a Adão, Josecé, Felipe Gabrich, João Balaio, ao poeta do céu, ao menino que escrevia na areia e aos hippies. Vez em quando os leio novamente. Como leio “Priapo de Ébano”, “O Eclético Darcy Ribeiro”, “Eterna Lembrança”, “O Rancho da Lua”, e “O Livro Proibido”, onde “libera geral”. São fases importantes, que nos mostram a realidade e a ficção. Pois ela inventa, mas não aumenta.
Mel é inventora porque também não se envergonha do que encarna, do que escreve. Assume-se. É de carne, tem seus desejos e suas tesões, e está sujeita a falhas e acertos. Teve uma escola que não foi uma escola, foi uma experiência de vida. Por isso, cria uma constelação interna e depois passa para outra coisa. Sua vida foi (e é) um paraíso, porque tudo de criativo captou, mas era (e é) um inferno também. Criou seu ambiente, com certa obsessividade até chegar às portas da dominação. Vive no limiar entre a vida cotidiana e a arte. Transmite, por trás de uma certa aparência de frieza, uma noção de ameaça sexual iminente. Como um vulcão prestes a entrar em erupção.
Mel não foi feita para parar. Mel não foi feita para manter ligações essenciais com coisas essenciais, pessoas essenciais e lugares essenciais. Foi feita para avançar sempre. E é o que faz de melhor.
Em cada escrita aparecem seus mundos, que não são os mesmos, mas se encontram muito mais do que imaginam. Em outros carnavais, já foi bem mais que a mulher fatal. Hoje é a femme fatale. Afinal, sexo nos tempos da ditadura era visto como coisa dos comuns, comunistas, subversivos. Mas era praticado por subservivos. Hoje, o que é? Uma propaganda no jornal?
Por dentro de Mel bate um generoso coração. Continua uma anarquista, graças a Deus! E deliciosamente verdadeira, fala o que tem que falar, escreve o que a vida ensinou/a e lhe deu/a. É sincera, direta. Não esconde o que pensa.
Encontro pouco atualmente com Amelina, mas quando encontramos caímos na gandaia de boca, caímos de cabeça na dança. Ela é toda poderosa e cheia de luz, e é tão bom ver como nos ilumina e faz nossa vida valer... São todos os tons colorindo a nossa escuridão, clareando o som dos corações nos quatro cantos da vida, sustentando-nos na alegria e na dor.
Conversamos sobre as namoradas de antigamente, sobre as peladas de futebol e as histórias que a vida nos leva e nos traz, sobre a perda dos amigos e o sempre encontrar de amigos novos. A gente expulsa do coração emoções para se concentrar no futuro e vai deixando a vida antiga para trás. Quando você acredita em coisas que não entende, então você sofre: a superstição não é o caminho, lembra-nos, como ensinou Stevie Wonder.
Não tem hora para receber amigos. Em sua casa tem biscoito farinha, biscoito fofão, biscoito nata, que derrete na boca com aquele café de rapadura. Não é a toa que lançou o livro “Folclore, Quitute e Amor”.
Anelina prega em nosso corpo, é um caso de amor com a literatura, vento que embala o cheiro da flor sem querer parar.
Amelinda nos traz juventude, é trecho de uma vida de um sonhador plantando esperança no coração pra depois aflorar.
Amelina Chaves é canto de roda e rua, contradança e congado, coisa de encabular.
A doçura de Mel é sabiá a cantar, fogueira a lumiar, liberdade a brilhar
Anelina, Amelinda, Amelina Chaves, a doçura de Mel é, pra nós, lembranças do que virá.

Sou louco, o que posso fazer? Escutar Billie Holyday?

Assisti “As Aventuras de Antonie Doinel”, do François Trauffaut, emprestado pelo amigo Rafael Gontijo. São filmes que me trazem boas lembranças - ou são lembranças que me vem à tona? Não sei ao certo. Nem ao errado...
O episódio “Antoine e Colette”, por exemplo, nos leva ao amor adolescente. Até a cor da vitrolinha dada de coração para a menina que morava no final da Rua João Pinheiro é igual à utilizada no quartinho de hotel em que ele fica. Só as músicas são outras. Ela gostava de Roberto, Caetano, Carpenters, Carole King. Ele, das francesas.
Alguns amores duram um tempo maior que outros. Isto acontece porque a gente vai crescendo e vendo o que é bom e o que vem do (a)mar... Nesta época, por exemplo, estava todo um amor adolescente, oculto, que cresceu e hoje se tornou vulto. Mas que bate no peito e, vez por outra, nos leva ao passado. Como outras coisas. Aquele era tempo de sorriso nos lábios, sanduíche de mortadela e guaraná. Eta, saudade! Mas saudade é para isso mesmo, sentir.
É preciso olhar essa vida antes e depois de assistir Butch Cassid e Sundance Kid no Cine Fátima. Época quando o amor salvava o tédio do dia a dia. Quem sabe um dia a gente se encontra no velho lugar!? Quem sabe um dia a gente ande de trem de ferro, coma salsichão num bar do bairro Barro Preto em Beagá, ou até torça para o mesmo time, assista novamente filmes que nos marcaram e ouça canções que nos perseguem.
Eu cresci assistindo filmes nos cinemas Fátima, São Luiz, Coronel Ribeiro, Ypiranga, Lafetá e Montes Claros. Velhas e boas tardes de domingo. Hoje, o DVD e a pirataria nos levam tudo em casa. Cresci lendo quadrinhos, que agora viraram graphic novels. Cresci brincando de finca na esplanada do Bom Jesus, na Malhada das Almas, e jogando bolinha de gude com João Véio, correndo as ruas no carrinho de rolimã com Márcio Hiram, subindo a serra do Mel com Agnaldo, João Ripão, Tino e Bodão. Hoje, não se vê mais estas brincadeiras, não existe serra, embora ela esteja lá e tentem colocar outros nomes nela.
No lugar em que a gente se acampava, bem na beirada do barranco, embaixo do pé de Jenipapo em que Charles, um dia, escreveu o nome de sua amada, não existe mais cachoeira. A serra virou ‘da Sapucaia’, ou ‘do Ibituruna’ engolindo o Mel e deixando a história em um canto qualquer. Acho que nem o pé de Jenipapo sobreviveu. Talvez o pé de goiaba branca da canção de Bodão ainda exista...
A Lapa Grande, a Pintada, a da Nascente e a Lapa D’Água, onde meu pai e Zé Manaíba me levavam aos domingos, virou parque que engoliu a fazenda de “Sêo” Pedro Veloso e dona Arinha. Ali os finais de semana eram de uma delícia só. Nunca mais andei a cavalo, nunca mais comi beiju com requeijão quente, nunca mais vi Arinha... Toda mata era boa, pois não tinha nem alçapão. Hoje, o perigo anda ao lado.
Aqui existia Montes Claros e a Montes Claros de baixo. Que não ficava na parte baixa da cidade, não era a divisão política. Era a zona do ‘meretríssimo’, como ensinou um irmão marista. Atualmente, as meninas estão em todo lugar. Fazem até anúncio em jornal. Daqui a pouco, chegam à televisão, já que na internet se espalharam. Acabou-se aquela fantasia de tomar uma cerveja na zona, de acompanhar Carlão, Curiango e Rays no domingo à tarde para “ver” as mulheres de Leobina ou Edna. Quiçá, uma rapidinha, a bacia no pé da cama para deixar tudo novo de novo, o rolo de papel higiênico pendurado no gradil da cama.
Não sobrou nem o ‘Café Columbia’ de “Seu Ciço”, onde estava a gemada mais gostosa de antes de dormir. Ou o ‘Rei do Sandwiche’, pregado em Cícero, como chamávamos Ciço. O ‘Bar Sibéria’, na esquina, com seu espetinho que Tião guardou a fórmula, a ‘Leiteria Celeste’ do Zé Priquitim. O tempo passou, a cidade se modernizou, montesclareou, montesqueceu. Não sobrou nem o café do ‘Zim Bolão’ nem a ‘Loteria Mineira’ de seu Donato, na esquina da Rua 15 com Simeão Ribeiro, e onde experimentei meus primeiros sorvetes da Kibon.
Os dias, as tardes, as noites montes-clarinas eram mais gostosas, diferentes, simples e tinha um quê de sensual. Tinham um quê dos quadros de Van Gogh. A gente podia ver até o café à noite, a enorme lanterna amarela que ilumina a esplanada e lança luz até as pedras da rua. As fachadas das casas que se prolonga sob um céu estrelado, de azul-escuro ou violeta.
Nos poços do rio Vieira até a Iara aparecia em noites de lua. Hoje os tempos são outros. O perigo ronda ao lado, o choro é mudo. Já nem faço mais a indagação em torno dessas diferenças. Muitos dos meus amigos se perderam na noite. Alguns, se mudaram de cidade, bairro, rua, quarteirão. Uns surgem de repente, na virada da esquina. Outros, vem em ondas telefônicas. Alguns mais, interneteiam-se e aparecem na tela, num baita susto.
Tem nada não, já ensinou Charles. Caminho é por onde se passa...
A saudade que sinto não é de tristeza, nem queima o peito. É apenas saudade que neste futuro a gente sente do passado, sem mudanças ou concessões, pois a gente é tão diferente da gente.
Os dias passam e não passam, enquanto aquelas velhas senhoras observam borboletas e pererecas, sentadas em tocos de pau no parque. Um pouco distante deitados na relva, um casal de namorados toma consciência de certas coisas, naquele vira e mexe. É o amor, diria o poeta - quiçá ele ainda nos salve. Pode-se observar que o verde do lugar é mais verde, embora a grama tenha verdes diferentes, desbotados aqui e ali. Psicologicamente, curto o encantamento simbiótico. Assim são estas coisas
Tenho muito ainda que andar, viver, aprender e aprontar por aí. Enquanto isso, assisto com meu filho, na televisão, o Pica-Pau, na Rede Record.
Everybody thinks I’m crazy/
Yeah! That’s me that’s me that’s me/
A couple of holes in everything/
“na-fa-got!” “I way ah-na-ha-ha”/
Crazy is me, and waht more can I do?
De fato, “todo mundo pensa que sou louco/ (...) sou louco, o que posso fazer”? Talvez escutar Billie Holliday...

Desatanto queixumes e idéias

No bar do Zim (ou Zinho, como o chama Haroldo Lívio) Bolão tinha uma boa Viriatinha, que a gente tomava e tirava o gosto com um pá de farofa, que o Ernesto nos servia numa colher. Era sempre pela manhã, nada pra fazer além de andar por aquele centro.
E no centro, o espaço mítico-sagrado com maior poder de sedução e encanto era, justamente, naquela época, as proximidades de Zim Bolão, ao lado do Cine São Luiz e em frente a Discobrasa do Severino, Dequinha e Toninho.
Dequinha aparecia, vez por outra, montado num tamanco de madeira, bem alto, que lhe aumentava o tamanho pequenininho. Vinha com aquele jeitão todo seu de ser, que traz até hoje.
Sempre que chegava um disco diferente, novo, me dava o toque. Uma vez passei por lá com a Marta e ele veio cheio de dedos, cheio de nãometoques, com o LP do John Lennon, Some Time in New York City. Tinha pedido um só. Pra mim! O mesmo ela havia feito com o álbum Tommy, do The Who, o Exile On Main Street, dos Stones. Dequinha gostava tanto de me vender que chegava a brigar com Toninho, indiscutivelmente o homem que dizia conhecer a musica que fazia a cabeça. Mas era com Dequinha que eu tinha maior carinho. Quando pequenos, defendíamos o mesmo time no campinho Beira Rio, na baixada, ou na Praça de Esportes. Quando mais velhos, depois desta fase, fomos compadres, com ele batizando minha filha Bianca. E eu gostava pois sempre fazia Zeferino pedir os meus gostos. Pelo menos um só. Pra mim!
Na área dos brasileiros era Caetano, Jard’s Macalé, Luiz Melodia. Sempre pedia um só. Para atender meu gosto. Um companheirão o Geraldo Dequinha, tão companheiro que mesmo longe, mesmo sem a gente se encontrar como deveria, estamos perto. Hoje, mora em Lagoa dos Patos, onde descansa dos perigos desta vida, pesca e anda por aqueles matos recheados de codorna, o que sabe preparar muito bem.
Toninho da Discobrasa era diferente. Não atendia a ninguém que vinha lhe pedir um disco mais brega. Tinha seu jeito peculiar de conversar, passando a mão na frente da boca, imitado pelo Jorginho Santos ou Tico Lopes, de quem ficou inimigo durante vários anos por causa disso.
Se alguém entrasse pedindo um disco do Odair José, ele não vendia. E ainda tentava convencer o comprador de que o cantor não prestava. Logo Odair que se transformou no maior ídolo da música brega, vendeu milhões de discos e emplacou hits como “Pare de Tomar a Pílula”, “Eu Vou Tirar Você Desse Lugar”. Nem quando aconteceu o Phono 73, quando Caetano cantou esta segunda música com o Odair, nada disto servia para mexer com os brios de Toninho. “Caetano está virando brega”, dizia a época. Toninho hoje trabalha como frentista, em um posto de gasolina. A vida para ele foi mais dura do que para Dequinha.
Some Time in New York City ficou na casa de alguém, nessa minha vida andante. Como Exile On Main Street e Tommy. Some Time era um dos meus álbuns prediletos.
Lembro de ouvir e curtir muito “Cold Turkey”, “New York City”, “Woman Is the Nigger of the World” e, principalmente, “Sunday Bloody Sunday”. Quem me chamou a atenção para essa canção foi o Geraldão Ferreira, da Rádio Cultura de Beagá. Ela fazia referência a Irlanda do Norte. No dia 30 de janeiro de 1972, a polícia matou treze pessoas que participavam de uma passeata católica contra o governo do país, e o fato ficou conhecido como Domingo Sangrento (Bloody Sunday). Anos mais tarde o grupo U2 faria também uma música com mesmo nome em referência ao fato.
Geraldão me conduzia pelo fio musical desde que estava em Montes Claros, na ZYD7 do Elias Siufi, nos anos sessenta do século XX. Ele namorava minha irmã, Zelita, o que era um escândalo naquela época. Ele negro, morador do Morrinho, na década de 1960. Ela, uma branca da Dr. Veloso. Imagina!
Pois eu não estava nem aí. Fiquei amigo do Geraldão, que tanto aprontou com o José Maria Peito de Aço na escola. Devo a Geraldão muitos dos meus passos na área musical. Depois ele foi pra capital, trabalhou na Itatiaia, mexeu na TV Vila Rica, colocou a Cultura e a Extra FM no ar, deu uma chegada a Porto Seguro passou pela TV Minas, pela Rádio Inconfidência e hoje está estacionado ao lado da Zelita, numa casinha gostosa na rua Major Barbosa, lá na Santa Efigênia. Na verdade, moderadamente estacionado. Foi responsável pela ida de diversos locutores montes-clarenses para Beagá. Padrinho da 98,9 FM, lembro dele dando dicas no seu programa “Ritmos da Noite” da Cultura, batendo papo ao vivo com Bob Marley ou Elthon John. É formado em Engenharia, quem diria. E fez a vida na rádio...
O Quarteirão do Povo, naquela época, ainda tinha calçamento de paralelepípedo, nem se sonhava com aqueles jardins da Babilônia. Cobertura (que ainda não veio), então, nem se falava... Mas o bar do Zim Bolão estava lá, para o cafezinho, o bate-papo, uma cerveja gelada no fim de tarde, no inicio da manhã, na hora do almoço. Parecia uma daquelas grutas da capital, comprida igual a elas, mas mais fina, não acompanhando o dono. E cada gole da pura e santa Viriatinha no ritualístico estalado da língua ia, aos poucos, desatando queixumes e idéias.
Em frente a Discobrasa, do lado do São Luiz, fica o Tone Nascimento, com um cubiculozinho deste tamainho (continua lá ainda hoje o espaço, transformado numa relojoaria). Era a loja do Tone K7, onde eu curtia boas músicas quando Severino não deixava a gente ficar na Discobrasa. Alik Poppof, Washington, Wellington Vieira, Eduardo Brasil, Ernani Camisasca, todos passavam por ali, queria Severino ou não queria.
Às vezes, de sacanagem, eu colocava um Beatles para tocar no Tone, bem mais alto que o normal, só para atentar Severino, a quem cheguei a emprestar meus gravadores - vez por outra -, quando a atividade pirata dele, de gravar fitas K7 - como em Tone -, falhava. Quem acordava feliz era o Farley Alcântara, que morava ao lado e em cima. Ele e Marcelo desciam, aí o papo rolava, a música não trocava e a venda não saia.
Quando o Tone pedia, gentilmente, para darmos um tempo, voltávamos pro Zim pra mais uma rodada de Viriatinha. E a alma, livre e leva no azalão dos sonhos, cavalgava por montes nunca dantes ultrapassados, no aboio e na lembrança de amores que se foram.
Deus seja louvado!