domingo, 21 de novembro de 2010

Como el musgito em la piedra, ay si si si

Chego a casa no domingo à tarde, após 48 horas numa quimo, e vou logo querer ler os jornais, antes mesmo do banho pra deixar a mumunha pra lá. Informação sobre minha montes-clarina cidade. Revisto tudo, nota, notinhas, noticia, gerais, policia, esporte, sociais... Meus olhos fixam na coluna da Kátia Geralda Batista e os fragmentos de Perhaps Love. Lembro da canção imortalizada por John Denver e Plácido Domingo e tento até cantar com minha voz de taquara rachada.
“Talvez o amor seja como um lugar de descanso, um abrigo da tempestade/ Ele existe para te dar conforto, ele está lá para te manter aquecido/ E nas horas de turbulência, quando mais você está sozinho/ A lembrança de um amor te levará para casa.”
O amor é interessante. Já perdi amores por escondê-los. Já acreditei em amores perfeitos. Já decepcionei pessoas que me amaram.
Descobri, por estes dias, que a gente tem um grande amor na vida. Só uma vez. Alguns, o deixa guardado como um fantasma. Os grandes amores, parece, não são para ser vividos. São só para sabermos que existem. Ou não? Ou ainda vamos vivê-los? Vamos retirá-los daquele local onde estão guardados, escondidos no coração?
Na verdade, o que é o amor? Há definição para o amor? Difícil definir! É quase um estado de espírito, uma coisa que transforma. Você pode amar hoje, e não amar amanhã. Isto seria apenas paixão? Acredito que o amor seja importante demais para defini-lo. Cada um ama do seu jeito.
Como Leonard Zelig, vivi o tempo de não pensar, mas transformar e só executar. Mas os tempos mudaram. Tudo ficou em seu tempo. Eu mesmo nunca fui a um lugar chamado Notting Hill, nem passei por Strawberry Fields, mas conheci André Quicé e Manuelzão num sábado ensolarado, cheio de amigos. Alguns sinceros, outros não.
Hoje vejo que não tenho mais um amigo para me emprestar a namorada no domingo a tarde, como fazia Ricardo Xarope. Nem quem me acompanha ao violão quando quero cantar “Quando Eu Me Chamar Saudade”, de Nelson Cavaquinho, como Fausto, em Janaúba, acompanhava em solos e Júlio Lacerda fazia ritmo, fora do tom, com uma caixinha de fósforos.
Fui um homem de muitas paixões. Paixão é assim mesmo. Guardei-as todas lá em cima, na salle des pas perdus, a sala dos passos perdidos. Para não encontrá-las mais. Por isso acredito que minha biografia deve ser meio que esquizofrênica, com pontos que não chegam perto, como carrinhos de bate-bate. Dizem que sou enfuziante e saltitante... Quiçá?
Judy Cum, por exemplo, era poderosa e se julgava a deusa do amor, do sexo e da beleza corporal. Afrodite. Ela saia do banheiro com aquela maravilhosa displicência das mulheres acostumadas à nudez em face de estranhos. Era fã de tudo que fosse surpreendente, principalmente na linha sexual. Experimentava. Tinha o escracho meticulosamente estudado de fazer amor, a energia eletrizante de uma puta, a antena globalizada no brincar com o sexo, a habilidade vocal de ais e uis e a cafonice das meninas de Tiana. Era uma onça no cio. Seus olhos enormes transmitiam tranquilidade e serenidade, e sempre prometiam um delicioso pecado. Com ela, o momento do prazer transcendia qualquer experimento que você tenha, já teve ou venha a ter. Deixava a gente viciado. Cocaína perto dela era brincadeira, pois chegava a brincar de esconde-esconde nas estrelas. Parecia uma escrava: fiel, sempre à disposição. Com ela descobri os caminhos da liberdade melhor que no livro do Jean Paul Sartre. Mas quando me assustei, onde fora parar minha independência, minha privacidade, minha vida própria?
Annie Hall tinha a cabeça complicada. Coisa de noiva nervosa que canta em casas noturnas. Coisas de noivo neurótico, que se apaixona por uma degradada cantora de bordel. Era sujeita a chuvas, trovoadas e enchentes. Ela queria ter um Thunderbird conversível, então comprou uma lambreta LD150cc 1958 e, assim, passeava pelos caminhos tortos da vila da Serra do Mutum-Mutum. Na verdade, era maluca, mas de boa alma. Tinha madeixas vivas e hipnóticas, vivia me ninando, me mimando e me amando. Quando tocava, quando cantava, parecia uma fada dos contos dos irmãos Grimm. Um dia, sumiu. Como sumiram as coisas da casa do meu amigo Tavinho. Abriu a porta e não tinha nada. Deixou um engradado de cerveja Antarctica, com as garrafas vazias, um uísque pela metade, alguns discos e fitas. Nem bilhete deixou! Achei até bom. Dizia que queria ser meu bem, meu zen, meu mal... Ou nenhuma das anteriores. Hoje ela vive de pensão e despeja sobre a filha sua ira contra o mundo.
Alice Tate era cheia de dilemas pessoais, de ciúme, ambição e competitividade. Fria como gelo, não se comovia com reações. Gostava de tomar ervas misturadas num chá de camomila ou capim santo. Dizia que tomava estes chás para perder suas inibições na vida. E na cama. Um dia se sentia invisível, mas estava ali, ao meu lado. Outro, voava, mas estava no telhado da casa. Achei que se comunicava com os espíritos, e daí surgiu a nossa interligação. Eu gostava dela e nossa relação durou um tempo, até que... Isto me traz a memória “Cenas de Um Casamento”, de Ingmar Bergman, onde ele disseca o fim da relação entre Mariane e Johan. Vai do idílio ao inferno conjugal depois que o marido revela que tem uma amante. Nada a ver com Woody Allen. Eu nem tinha amante, nem olhava para as meninas que passavam ao lado, mas passei por todo o filme. Foi melhor deixar aquela personagem antipática e cínica para ver se os anos a consertavam. Não a vi mais.
Cecília parecia ter saído do de uma tela de cinema. Provocava a gente com uma ingenuidade extremamente sexy. Não era só uma mulher. Era uma performance – e das boas! Me queria, me cheirava, me usava com definição. Penso até hoje ouvir a sua pulsação atravessada no meu peito. Ela ia a praias de nudismo e me levava junto. Tinha o peito inteiraço, durinho. Duros, lindos, a coisa mais encantadora daquele corpo. A não ser... É! Na verdade nem tudo era um mar de rosas. Um dia, ela voltou para o filme do qual tinha escapado e deu continuidade a comédia. Foram bons tempos aqueles em que o nó ainda carregava mistérios. Somos amigos, mais que os amantes que fomos um dia... Ainda hoje a assisto em DVD. Ela olha com aquela carinha, e não mais sai da tela. Continua no filme, onde faz até um strip-tease olhando pra mim, com aquela doce áurea...
Dolores Paley queria alguém para chamar de seu e me achou um dia a noite, desiludido, sentado numa mesa do Seis a Seis, de Afonso Ramos. Era cheia de dilemas pessoais, tinha a necessidade de não se prender a nada. Faltava um mantra que se adaptasse a ela, e esse mantra parecia, naquele momento, ser eu. Passamos um tempo juntos, fizemos até uma lua de mel na vila da Serra do Mutum-Mutum, e assim tentamos formar uma linda e modesta vida de casados. Como nos contos de fadas. Era para ter filhos e sermos felizes para sempre, embora a incompatibilidade de gênios e gêneros fosse imensa. Foram tantos os crimes e pecados que cometemos juntos, que achamos melhor nos separarmos. Ela deve estar hoje em Mutum-Mutum, numa daquelas salas de algum ministério. Mistério que nem quero resolver.
Vicky Cristina não morava em Barcelona, adorava de seu nome duplo e queria visitar a Catalunha. Estava de casamento marcado quando nos conhecemos. Sua graça era inimitável, seu deboche mais contagiante ainda. Tinha uma boca pidona, destas difíceis de se ver. Foi amor a primeira vista. Ela era do tipo destas meninas desencarnadas que não estão a fim de corre-corre. Vicky vinha do nada, aquela bela sem talento, que tinha uma imaturidade prolongada e que adiava a hora de tomar um rumo na vida. E na carreira. Por isso, demos certo. Éramos tão apaixonados que tivemos apenas uma noite. Ela voltou para o namorado, casou e tem filhos. Sou padrinho de dois...
Conheci Sally White quando trabalhava numa rádio. Era modestamente imodesta, apesar de limpinha e cheirosa, com aquele cheio de jasmim que se traz do mato. Que nos lembra a calma de uma fazenda qualquer, com casinha amarela, janelas e portas azuis, passarinhos, fogão de lenha e o bafo de guaco quando se gripa no cerrado. Com ela foram programas decentes, honestos, gostosos, de se revirar os olhos. Aproveitei aqueles dias brancos e solitários naquela casinha de fazenda, amei muito e bastante. Era como o poema de Manuel Bandeira: estava amando profundamente. Mas é preciso ter maturidade para casar, ter filhos e principalmente, se separar. Não deu certo. Fomos cada um para o seu lado...
As lembranças de amores passados costumam ficar abandonados pela casa, aqui e ali, lá e acolá. Até que um dia, ou são reciclados ou jogados no lixo. São cacarecos amorosos. Porque quem ama nunca sabe o que ama, nem sabe por que ama, nem sabe o que é amar... E ainda lembrando Pessoa, o poeta é um fingidor./ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente. Muito do que leram, pode ser verdade, pode ser mentira, pode ser experiências para o que virá em cada um de nós.
Embora acredite que já adolesci demais, ainda tenho carência de passear de mãos dadas com minha mulher. Acho que deveria ser obrigatório namorar, passar o dia inteiro rindo e brincando, namorando. Pensemos, crianças adultas, que a vida passa e não fica, nada deixa e nunca regressa, vai para um mar muito longe, para o pé do Fado, mais longe que os deuses.
“Talvez o amor seja como uma janela, talvez uma porta aberta/ Ele te convida a chegar mais perto, ele quer te mostrar mais/ E mesmo que você se perca e não saiba o que fazer/ A lembrança de um amor fará você superar tudo!”.
Vem sentar-te comigo, Inês, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa...

Não verás nenhum Paris como este

Está com febre a pracinha construída no final da Avenida Belo Horizonte e no comecinho da Santos Dumont. Não tem nome, pois o vereador que apresentaria um projeto homenageando um cidadão comum ficou com medo de ser excomungado. É a mocnemia em sua fase mais aguda. Coisas da vida montes-clarina.
A luz da pracinha vem do brilho de postes platônicos. Ali tinha um vento sagrado, que acabou. Ali fiéis realizavam rezas, procissões e quermesses, que um padre tresloucado resolveu suspender. Seria a prepotência a serviço de um idealismo vã, a safadeza feita romantismo. Antigamente, Bala Doce lembra bem, era ‘Ora Pros Prates’. Agora, é ‘Ora Pros Nobres’. Hora pros Novaes, necas! Coisas da vida...
Na casa de Maria de Zé Branco, que morava ao lado pracinha, só tem uma mulher ganindo na vitrola. A música dos Beatles não toca mais, e nem casa de Maria de Zé Branco existe. Como não existem João Veio, “Sêo” Belo, Amaral, Humberto e Belzinha, Zé da Farda, Manoelito e “Sêo” Urse. Também inexistem a Cantina do Zezinho Beleza, o bar do Geraldo Bico Doce e o antigo quartel da Policia Rodoviária. Daquele tempo ficou o Socorro Irmãos Abreu, do outro lado da praça que não tem nome, sem lugar para colocar seus carros quebrados... Vomitus cremus!
Reparando bem posso dizer que também as locomotivas que passavam uivando pela cidade, vindo do sertão baiano, são agora só apitos noturnos distantes. Com cuidado, para não atrapalhar o sono ou ser multado por causa da Lei do Silêncio. Lupis vorax!
Estou em plena primaveracidade montes-clarina, mas a primavoracidade incurável do viver norte-mineiro me trás idéias e idéias sobre as doenças da minha cidade. Endepidêmica, a mocnemia é uma doença que vem em ondas como o mar que não temos. Então, não deveria vir. Mas vem, pois a mocnemia é uma doença fértil, em sua débil beleza. Ela entra no coração, faz a gente sentir saudade das ruas, das casas, dos bairros, das pessoas.
Tem gente que não sente saudades por causa da velocidade da sua vida. Ela é tão grande que nem percebem metade das coisas que acontecem em volta. Periga é o tempo passar e ela nem sentir. Vivem em outra.
O mundo pode até começar em Montes Claros, mas para eles continua para muitos lados. Anywhere. A doce capital da República do Pequistão tem seus trejeitos e mungangas, onde passa a finíssima cabrobonha sertaneja, colhida nas beiradas do São Francisco.
Montes Claros tem suas doenças, como a praça sem nome, como a chacrinha do Chorró, a fazenda do São Geraldo.
Montes Claros tem seus ídolos de infância, madureza e velhice, Vicente Alves, José Eymar, Wagner Black e Marcelo Godoy.
É por isso que hoje sofro de mocnemia, a doença congênita da saudade. Acredito também que Carmem Neto, Augusto Vieira, Alberto Senna, Haroldo Lívio, Raquel Chaves, Rafael Reys e Ucho Ribeiro sofram do mesmo mal. O bom que ele vem em ondas...
Lembro que descendo a Rua Ruy Barbosa tinha uma padaria de nome poético, Flor do Sertão. Nunca comi do pão francês fabricado ali, embora namorasse os sonhos que ficavam expostos nas prateleiras, sem nunca tê-los experimentado também. Em frente ficava a casa e a oficina de Godofredo Guedes. Dei conta que a padaria, o padeiro que entregava o pão, a oficina onde um dia foi construído um piano sumiram para sempre. Hoje, o lugar é sem sal, sem graça. As casas existem, mas perderam o tempero, o coentro, o vínculo. Essa descoberta de distraído leva meus pensamentos para outros locais que desapareceram. A pensão Manchester, que existia na Rua Grão-Mogol, entre os hotéis Nobre e Rocha, e onde uma senhora das antigas chamava fregueses e fregueses. Também virou pó. Ou melhor, foi transformado em poeira. Poeira amarela. Virou estacionamento. Até aquele consultório sentimental que existia perto do mercado, sumiu no ar. E a pensão no final da Rua Januária, onde Rays tantas vezes namorou? E a barbearia de Luis, na Padre Augusto? E Luiz Alfaiate, da Dr. Veloso, atrás do Cine São Luiz? E o Cine São Luiz, onde um dia peguei em sua mão? E Luiz do Bar Sibéria? O Colégio Diocesano, que virou supermercado. O prédio da fabrica de tecidos na Coronel Prates, que virou prédio de apertamentos. E as viagens de trem...
Vez em quando cheguei a ir o Bar de Espanha, naquele longínquo Alto Severo, hoje Santo Expedito. Vez em quando fui levado a Gazeta do Norte, que funcionava na Rua Quinze, hoje Presidente Vargas, 164. Vez em quando brincava com Roberto Luiz pelos corredores da farmácia de Mário Versiani Veloso. Só de vez em quando. O prédio da Gazeta ainda está lá, se bem olhado for...
A câmara do meu olhar percorre os principais espaços montes-clarinados, alguns mostrados por meu pai, outros pelos amigos. É a mocnemia. As estradas que nos levam a mergulhar em corações e mentes desta cidade profunda, mais pobre, maior. O cabaré, a praça, os balcões de madeira dos botecos, que hoje quase não existem. O copo de pinga reforçado no fundo para a batida no balcão. Os cantores de final de semana, os amores, os amigos. Os bareszinhos e botecos revelando contradições e angústias.
Ainda ontem pai olhou terno sobre a cidade, voou rasante sobre a cidade, como andorinha. Viu a saudade, a solidão das pessoas. Desnudou os bares da cidade, mas sem ser invasivo. Conversou quantas e quantas vezes com Waldir Macedo, Zé Figueiredo e Miltinho no bar Caiçara, na Rua Padre Augusto. Lá tinha uma placa “Aqui reúnem-se caçadores, pescadores e outros mentirosos”. Nem as histórias sobraram... Nem as ruas estreitas de paralelepípedos. Ou melhor, sobraram as ruas estreitas da cidade. Mas não sobrou Dona Carlota que ensinava o bê a bá.
Montes Claros nunca chegou a ser uma grande boca de mil dentes, como via Mário de Andrade sua São Paulo. Montes Claros vive a trancos e barrancos. E barracos, que se criam cada dia mais, embora o poder público e social não enxergue.
Nesta cidade ganhei minha rugas. Mas estas rugas valem tanto quanto o olhar tímido da morena de cabelos longos, que passa por mim na viela perto da Fafil, e aqui veio estudar. A cidade é apenas mais uma cidade. Para ela, como para outros, não existe uma doença chamada mocnemia. Para muitos, a mocnemia só resta no folclore dos catopés, frio e vazio, mas onde pelo menos eu posso cantar como um passarinho.
Montes Claros situa-se assim: uma cidade que flutua na linha do horizonte, entre o céu e o sertão, onde a eternidade mora e se entretém.
Ora pro nobis!
Ora pro Prates!

obs/cenas montes-clarenses

são coisas mortas
em meu coração de menino levado.
são mentiras bestas, que você me faz manter calado.
são dengos destinados a um mútuo desafio.
são desastres de amor mantidos frios,
ou, quem sabe (?), lições de amor.
são coisas certas,
que dizem existir em um dia de muito desgosto
como gostaria de ouvir suas pequenas palavras,
e que elas fossem como um dengo,
com um gosto de hortelã
em uma lingua beijada.
pôxa, quem vai dizer que neste mundo
acontecem tantos encontros desesperados,
tantas torturas desajeitadas
tantos sofrimentos perpétuos...
são coisas chatas de se dizer.
como, por que não estás aqui, você aqui, nós, todos juntos
coisas incompreensíveis que judiam da gente
que repudiam a gente
leros & leros & doces boleros
e mestiços sacrifícios
e deuses e traumas e maldades
e nestor e marta e josé e clara e cláudia
e gelsa e mary e marte e vênus e cleide

obs/cenas montes-clarenses

viva tânia mara,
abasse il ré!
eu li as notícias hoje, meu amor,
mas o que era doce, já se acabou,
tânia mara levou os meus trinta e poucos anos
tânia mara das marés...
de Ci, de Ré, do Tino e Dó!
na morte de minas
é ferro, é fogo,
é barra pesada pro meu coração.
no norte de minas,
os peperepeques da morte são os pobres
de Maré, de Ci, do Tino e Dó!
aprenda a chorar como as crianças, meu amor
o Norte de Minas é aqui,
a morte de Minas, está aqui.
o Haiti não é aqui
e a vida sempre será inesperada.

obs/cenas montes-clarenses

chegou a hora de revolver a vida,
verificar o que vai para o armário
dos sonhos
o que pode ainda ser utilizado
e aquilo que vai logo para o lixo.
chegou a hora de revolver o passado
preparar a segunda parte, o segundo ato,
agitar, revirar, cavar, examinar
e pisar com cuidado os próximos passos.
está na hora do basta,
de dar um chega pra lá na tristeza!

obs/cenas montes-clarenses

jararaca, urutu, surucucurana
margarida, elizeth, eliane,
caiçara, jararacuçu,
fátima, léa,
cruzeira, coitiara,
miriam, maria,
cascavel, boicininga, maracambóia,
célia, marcélia, dilma,
pico-de-jaca, surucucu, surucutinga,
júlia, dirce, sílvia
coral, boicorá
tânia, valéria
a tensão entre saturno e marte
me deixa de bom humor

obs/cenas - primeira

suado, na malhada das almas,
um trago, na barraca do modesto.
depois, pé na poeira
lá vai a vida
japonvar, água-boa, varzelândia...
na volta, uma nova esperança.
de madrugada madrugava ainda
a cerveja na outra malhada,
chorró, joão, dé, fátima e outros tantos...
eu, com meus deuses,
ouço conselhos de pã e set
pra que não siga caminhos
como o zelig, do allen,
pois ninguém esquece de morrer.

Noturno nº 5, em Fá Sustenido Maior, Opus 15

Escuto ‘Noturno op. 15 em Fá Maior’ de Chopin, e meu pensamento viaja para quando minha irmã Zelita tocava esta música no piano, na sala da casa da Dr. Velloso. Quantos anos... Que tempo!
Era o tempo em que as mãos de minha mãe me vestiam com a roupa domingueira para participar da Cruzada do Padre Dudu. Isto aconteceu durante anos e anos da minha vida. Suas roupas, feitas no fim de tarde, camisas e calças com a sobra de panos, me protegeram. Alinhavaram a minha alma. Fizeram bainha em meu ego. Coseram meu coração.
Este disco que escuto hoje deve ser para reavivar memórias. Ouço agora a sonata ‘Claire de Lune’ – 1º Movimento, do Beethoven, que Ita também mostrava para a gente, nas manhãs de domingo, no piano da sala, antes do almoço em família. Ou seria nas tardes de sábado, depois de eu ter ido ao catecismo, e chegado com uma baita fome de biscoitos e bolo? É o passado rondando em minha porta feito alma penada...
O lanche de sábado a tarde era diferente. Além de bolo e de pessoas que apareciam na casa, rolava papos que eu ficava de butuca, escutando e comendo. Comia biscoito de farinha, biscoito fofão, biscoito de nata que derretia na boca. Comia rosca feita em casa, bolo de fubá, beiju e, vez por outra, um doce de casca de laranja no melado de cana. Fingia de sonso, como meu amigo Altanir Castro Silva. E enchia o bucho. Amanhã, domingo, vamos pra Lapa Grande? Cheirar orvalho, ver o nascer do sol? Ou Belinha vai matar galinha, fazer farofa, caprichar no feijão tropeiro? Domingo é domingo, dia dos netos, filhos, amigos, companheiros de alegria e lembranças. Depois, a tarde, aí sim, quieta o insossego.
Estas lembranças me fluem talvez por ter passado agorinha mesmo pela Rua Afonso Pena e presenciado a derrubada de um antigo posto de gasolina da Esso, na esquina com a Rua Padre Augusto. Ele ficava em frente ao ‘finado’ Restaurante Mangueirinha e a casa de Maria Vasconcelos Câmara, Tia Lica. Lembro de ter comprado querosene lá, nos anos 1960. Frequentei o lugar com Virgilio de Paula, no início na década de 1980, quando era o ‘Barrigudo’, boteco de João Maurício, irmão de Nenzão. Atualmente tinha virado floricultura. Sempre pensei em morar naquele lugar. Talvez por causa do alpendre. Talvez por causa do lugar, um mundo a parte, entre a beleza natural de árvores nos quintais e a beleza aparente de casas e prédios intermurais. Aquele sobrado parecia poesia.
Descobri que só funciono amando. Assim, escrevo tudo o que vivo e vivi. Gostaria de escrever sobre o que eu não vivi, não estou vivendo, mas acredito que fica forçado. É bom brincar que no que escrevo está meu diário. De ontem, de hoje e de amanhã.
Naqueles anos que Ita tocava ‘Noturno’, pai trabalhava no DER e mãe costurava para fora. Ficava na máquina até bem tarde da noite. Eu, moleque de se jogar fora, caçula, tinha que me virar para ir ao cinema do domingo. Assim, não podia perder a missa nem as ‘contrições’ de Padre Dudu. Contava ponto para ganhar meu cruzeiro.
Certa vez, indo para a Missa das Crianças, domingo pela manhã, achei Cr$ 2,00 na rua. Uma nota amarela, mas que dava para ir ao cinema. E sobrava para a semana! Mas, e o medo de Deus? Aquele dinheiro deveria ser para ele, me falava um anjo da guarda. Outro, apontava que eu tinha achado, e como não havia ninguém na rua, era meu. Mas o outro anjo atazanava a falar no ouvido:: Deus estava me olhando o tempo inteiro, em casa, no banheiro, nos encontros com a turminha da Praça Portugal. Teria que dar o dinheiro na igreja? Todo? Fui ao Cine Teatro Fátima na sessão da manhã e, à tarde, assisti ainda a jogo do Ateneu do Beto, Bichara e João Batista. Se pequei, foi contra a castidade... Mas aí, foi depois.
Na Cruzada de Padre Dudu, aquela turma de calças curtas conheceu o mistério da Santíssima Trindade e outros mistérios mais palpáveis. A gente via as rezas dos adultos, participava de confissões, procissões e cerimônias da semana santa, com velas, terços e a tristeza no olhar. Éramos como se arcanjos esquecidos no canto da sala, só observando.
Naqueles anos que deixaram ‘Claire de Lune’ e ‘Noturno’ na minha mente, a gente ia a Belo Horizonte numa rural. Era uma viagem longa, cansativa, saindo de Montes Claros às cinco da manhã, dando a volta no morro e seguindo estrada afora. Minha irmã Ducarmo sempre passava mal, vomitava.
Em Belo Horizonte ficávamos na pensão de Tia Quininha, onde eu gostava de conversar com Vó Lainha, mãe de Jair e Iraci de Oliveira. Sebastiana era a cozinheira daquele sobrado a Rua Curitiba, 1800, no bairro de Lourdes. Tinha uma garagem, cuja laje era o terraço, e muitas flores amarelas, que parecem com a Carobinha. Por lá viviam vários estudantes. Lembro bem de João Carlos Sobreira e dos filhos de tia Quininha, Fred e Thomas. Naquele casarão fui apresentado ao chiclete de bola, ao cachorro quente e ao cadilac rabo de peixe. Foi lá também que aprendi a guardar dinheiro. Sebastiana tinha uma mala cheia, e me incentivava.
Um trauma que guardei foi de uma viagem de trem. Aos 11 anos quis ir para a capital, mas só descobri que a faria sozinho na última hora. E lá estava eu, na estação ferroviária com uma malinha de roupas e um nó na garganta. Consegui conter o choro por causa da vergonha de chorar indo para Belo Horizonte. Foi uma viagem plácida, agridoce, melancólica. Me mostrei menos interessado nos grandes lances do destino do que nos pequenos ritos do cotidiano. Estava indo para longe do meu abrigo, onde era acostumado e recebia gestos singelos de meus pais, meus irmãos, meus amigos. Onde era protegido. Descobri naquela viagem que meu refúgio não era hermético. Nem eterno. Talvez étero.
Estas lembranças me fluem talvez por ter passado agorinha mesmo pela Afonso Pena e presenciado a derrubada do antigo posto de gasolina. Onde foi o ‘Barrigudo’. Mais um pedacinho da minha cidade está morrendo. Aquele sobradinho que um dia planejei morar, que um dia planejei sentar em seu alpendre, em que um dia planejei escrever coisas e coisas, está derretendo. E não há como não deixar cair uma lágrima por mais este desmanche.
Há anos ouço falar sobre a tentativa de revitalização da parte antiga da cidade. Parece não dar certo. Até a parte não tão antiga assim está sumindo...
Ultimamente, baguncei meu coreto e pendi para o realismo – no que mantive uma única atitude firme: a de não ser mais tão otimista.
Mas, há alguma chance para ter de volta minha cidade?

Ainda somos os mesmos e vivemos como Belchior

Quando tinha meus 19, 20 anos, não havia tanta casa nem tanta gente em Montes Claros como agora. A geografia da cidade e seu céu eram mais notáveis.
Podíamos até reunir em grupo, cabelo ao vento, sair pelas ruas, gente jovem reunida, querendo colocar penico na mão de estátuas, subir e descer carros pelas avenidas de então.
Podíamos sentar nas esquinas e conversar com amigos até altas horas, pois viver é bem melhor do que sonhar.
Isto é impossível hoje para os meninos de 19, 20 anos. Há perigo na esquina, pior do que naqueles tempos em que o sinal estava fechado prá nós, que éramos jovens...
Podíamos pular naquele rio dos anos 1970 que inundava nossa imaginação e... Catibum!
Por isso, esta é uma história muito mais complexa do que aparenta.
Ao longo dela as pessoas vão perceber claramente o que parece ser erro de montagem e continuidade. Mas são apenas pequenas falhas, cenas que são mostradas de um ângulo por um e que, quando você ou/vê por outro, as cenas trazem os atores em posições diferentes da anterior.
Mas são perceptíveis para poucos.
Apenas causam um pequeno desconforto na memória. Passa rápido!
A realidade é fragmentada, distorcida pelo passar dos anos. Nem tudo que você ou/vê sobre essa história pode ser realidade.
Mas existe muita realidade nela.
Assim podemos tentar falar sobre a turma do Catibum.
Turma do Catibum?
Mas o que seria Catibum?
Apenas um pulo na água?
Apenas uma pedra jogada na água?
Não! Era um grupo que se propunha a revolucionar a cultura nacional, funcionando como uma pedra jogada na água. Ela provocaria círculos que iriam se expandir.
Não sei quem me convidou para participar. Acredito ter sido o Georgino Junior. Ou Reginauro Silva. Embora conhecesse todos eles.
Estive em reuniões etílicas adoráveis, onde quaisquer poesias, poemas, prosas ou proesias se transformavam em algo lindo, lúdico, na voz de Eduardo Lima. Até meus pequenos achados, que escondia tanto dentro dos armários do meu eu.
Era Eduardo lendo poemas, e a plateia pedindo bis.
Tínhamos uma proposta nova, com ambições intelectuais e educativas? Não!
Apenas uma turma de jovens anarquistas que queria mudar o mundo, a partir de Montes Claros.
Quanta pretensão!
Ainda mais naqueles encontros, em que o pior dos poemas ficava lindo após umas batidas de limão.
Éramos um bando de malucos cismados em ser poetas, como dizia Reginauro. Como se o grupo fosse a cabeça pensante da cidade.
Reuníamos na casa de um ou de outro.
Foram encontros no porão da Rita Maciel, na parte antiga da cidade; na casa do Fernando Rubinger, no bairro Melo; na residência da Márcia Sá, ali pelos lados da Catedral, e tantas e tontas outras casas... Era a família catibumense.
Nos ‘saraus’ estavam sempre os Eduardo, Djalmir, Tadeu, Rubinger, Junior, Procópio, Ritinha, Clarice, Kyrie, Márcia, Marta, Maria do Carmo, Reginauro... Devem ter outros, que esqueci pelo caminho.
Todo mundo era intelectual.
Todo mundo sabia de tudo.
Ninguém era besta de ser besta.
Ou éramos todos?
Ali tinha gente irônica, provocadora, genial e polêmica.
Ali mostramos os animais que existiam dentro de cada um, que nem conhecíamos ainda, mas que apareceram a partir daquele momento.
Ali várias partes fizeram um todo.
Era como um amontoado de histórias, com tramas paralelas oníricas...
A família catibumense sobreviveu até a TV Globo aparecer para fazer uma reportagem sobre esta turma que, queiram ou não, foi significativa para aquela década.
Depois de exibida, todo mundo virou estrela. Todo mundo virou artista. E artista que se preze é marginal!
O grupo acabou, embora todos sejam amigos até hoje.
Naqueles anos 1970, o Catibum tinha tudo para espocar a cilibina.
Mas virou apenas uma tragicomédia. Embora os frutos estejam aí até hoje, meio catibumesados, é claro, mas vivos e prontos para a vida.
Foi ali que comecei a escrever o primeiro e único romance de minha vida. Saiu tudo em menos de um mês. E ficou empacado durante anos. Fui incapaz de imaginar um fim para a história.
Durante 15 anos de minha vida, via aqueles devaneios alfarrábicos na estante, e nunca achava um final – feliz nem infeliz – para ele...
Até um dia que, após mais uma leitura de suas quase 200 páginas, queimei.
Hoje, me arrependo.
Nele, eu mostrava quase que o dia a dia daquele tempo, do Catibum e da Academia Juvenil de Letras... Duas histórias paralelas, completamente diferentes.
A vida continua.
Porque ela, a vida, é essa atividade inquieta, incansável e vazia de quem não se satisfaz com coisa alguma. Somos assim ainda hoje. Recomeçando sempre...
Mesmo sabendo que minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como Belchior...

Ashuashuashuashuashuashu!

Janaúba não muda. Mudam Janaúba. Passa dia, passa ano, passa século. E olha que nem um século ela tem! Janaúba está sempre sob os ventos!
Eles, que chegam em abril, continuam a bater em nosso rosto neste agosto. O vento no ermo a todos concerne, lembra João Rosa em Tutaméia. Tudo o que vemos é por uma básica ilusão de óptica, responde em Estas Estórias. Mas na hora que o vento bate no cabelo da gorutubana, ele faz dela uma ave solta, voando, soltando as penas, deixando-a vistosa, feito flor de açucena.
Minha filha Brisa virou moça de repente. Gorutubana, bonita, 16 anos. Linda! E eu nem a vi crescer como queria. A vida nunca é onde, lembra Rosa. Hoje, sigo o crescimento da Victória (Totóia) e do Júnior (Juca), e alimento o amor de todos. Mas como é difícil educar filhos nestes tempos de cibernética, aritmética, pessoas sem ética. Mô sabe como! A primeira, que um para ser alto nesta vida tem de aprender, é topar firme as invejas dos outros restantes, ensina Rosa.
Ando pelas ruas da Gorutuba de antigamente, presente só em minha cabeça. Ela desapareceu de repente, num clarão, num trovão, num relâmpago. Janaúba mudou. Ganhou ar de metrópole. A filha pequena de Montes Claros quer dar seu grito de independência. Janaúba não é uma cidade urbana. É de forasteiros. Os mesmos que chegaram, foram afastando os antigos, empurrando-os com a barriga.
Hoje, já não existem mais cavalos amarrados no tronco do Beco da Morte, no começo da Belo Horizonte. Aliás, nem tronco há mais! E nem chamam de Beco da Morte.
Hoje ainda se fala do monstro da barragem, que virou bloco de carnaval: Bixo da Barragem. Olha só! Mas, na lua cheia, não aparece mais o lobisomem. Não há mais a mula-sem-cabeça, que soltava fogo pelo pescoço, e assustava as donzelas das antigas. Aliás, há donzelas em Janaúba? Há, é claro!
Não há mais é a gameleira, que deu nome à cidade, e que, entre suas folhagens, os demônios, mais negros do que a noite negra, vinham às sextas-feiras da quaresma fazer planos para tentarem os que viviam na graça de Deus.
Até hoje corre como certo que foi debaixo da gameleira que Mendes Lourenço, quando vaqueiro de Antônio Ramalhudo, deu sua alma ao diabo para ajudar a ele ser o maior criador das caatingas. Também era ali que João Faustino, depois que matou o padre Vitório, vinha, toda sexta-feira da quaresma, de São José do Gorutuba, para virar lobisomem. Tudo acontecia debaixo da gameleira. Nem São José do Gorutuba foi pra frente, com a lavagem do sangue de Padre Vitório pelas águas do Bico da Pedra. Nem a gameleira vingou. E Ana Rosa? Ah! Ana Rosa, a mulher do padre, foi esquecida pelas novas gerações...
As ruas de Janaúba já não são as mesmas. Os bairros mudaram. O Padre Eustáquio continua ali, do outro lado da linha de trem de ferro. Não saiu do lugar, pois não tinha rodinhas. Lá ainda aparecem, vez por outra, um gorutubano, daqueles, do pé rachado. Mas só vez por outra, já que estão lá pros Barbosas da vida. Êta povo! Êta vida! Êta, Donatão! A vida é morte ou dinheiro...
No meu tempo, e foram apenas 20 anos atrás, todas as pessoas se conheciam em Janaúba. E se cumprimentavam, gostassem ou não umas das outras. Foi um tempo curto o meu lá, nove anos, mas ficou eterno.
Lá tinham duas facções políticas: os Timbós, e os Fariseus. Mas como a vida da gente nunca tem termo real, a política da cidade do meu coração seguiu seus passos. Também se tornou irreal.
É bom andar pelas ruas de Janaúba. Descer a asfaltada e moderna – dizem que inspirada numa ruela de cidade francesa – Avenida do Comércio, virar na nova praça do Banco do Nordeste, descer a Francisco Sá ou subir a Brasil.
Vejo as gorutubanas, tão poucas. Com suas pernas grossas, bunda arredondada. Negras, algumas mais claras, outras mais escuras. Pois o Quilombo do Gorutuba já se foi há muito tempo.
De noite elas se misturam com o verde escuro da mata, ficam ainda mais bonitas com a luz do luar de prata. Cantam, e como dançam, as negras do Gorutuba. Nadam no rio que já foi Kuruatuba. Hoje, um filete de água... Coisas que nem o coração explica.
Comer um churrasco em Janaúba é simples. Na Francisco Sá, transformaram a antiga pizzaria do Beto, que tinha nos fundos o Luiz Caldos, numa bela churrascaria. Se bem que eu prefiro ir comer lá em Dé, na Avenida Manoel Athayde. Um restaurante gostoso ao lado do cemitério. Da Saudade! Onde se acha uma paçoca divina. E, já que esta ao lado do cemitério, a gente vai deslembrando os nomes. O fantasma mora ao lado... Batemos papo com eles, bebemos com eles. Coisa da vida, como diria meu pai...
Estou aqui, querendo rever amigos novos e antigos. Parece música. São só duas, três horas, que passo nos gorutubas da vida, a maioria delas (tantas) em reunião. Mas é gostoso sentir a presença deles. Raul, Zé Dias, Arnaldo, Jedir... Américo, Oliveira, Antonio Augusto, Fernando Lucas... E o rio!
As lavadeiras do Gorutuba, todas gorutubanas do pé rachado, continuam lá, com os seios de fora. Lavando a roupa para os patrões. Para viver! Elas são cirandeiras à beira do rio, o braço escravo. É Janaúba sem mim, é Janaúba sem mar, nas ondas do ar... Quanto tempo vivi aqui, como amo esta cidade, meu Deus do céu! Que paixão estranha esta! Talvez tenha sido minha grande paixão, meu grande amor, até encontrar o amor verdadeiro, que está ao meu lado.
Fico a lembrar aqui, vendo estas lavadeiras do rio Gorutuba, como a vida passa ligeiro, como as águas do rio. Como os anos voam. E não é pelas asas da Panair.
Estou muito feliz aqui hoje. Tanto tempo que não vejo minha Janaúba amada. Tanto tempo que não sei quanto. Cadê Pinduca, Zé Tomé, José Dias e Seu Raul? Cadê esse povo? Cadê Jedir, cadê Zezinho Pereira e seu pé de caju, o único que já vi dar frutos vermelhos e amarelos. Ele plantou um junto com o outro. Os dois parecem um.
Cadê vocês, ó mãe de Deus?
Cadê o trem que me trouxe aqui, tantas vezes? Cadê os amigos andando serelepes pelas ruas, perguntando por que eu sumi...? Acho que foi na ânsia de invadir seu peito assim, cidade minha, de qualquer jeito, que acabei machucando meu coração. Mas ele sabe que o sofrimento, por amor a uma cidade, não é tormento. É só paixão. Ai! É só paixão. É só desejo.
Estou aqui, leve e solto, voado nestes gorutubas de minha vida.
Ai! Hoje eu vou tomar uma cachaça no bar do Dé. Ao lado do cemitério. Com Porretinha, Arnaldo Pereira e Zé Dias. Se eles não tiverem, tomo uma pro santo, já que estou ao lado do cemitério da Saudade. Quantas saudades de quantos que ali estão. Conforme o vento que bate ao pé da planta, a gente pega e canta, a gente quer cantar.
Desanuviei! Essa cidade é linda, e é dos negros, Victoria e Júnior.
Embora os brancos, quase todos forasteiros, como eu, cismem de tomar conta dela.
Vou mostrar pra vocês, meus filhos, a praia do Copo Sujo, as piscinas do Barreiro da Raiz. Vou mostrar os recantos da Terra do Benvirá, que tanto cantou Geraldo Vandré. E nem a conheceu!
Vou apresentar a vocês aos negros que moram no Barbosas, e cuja terra, Janaúba, era deles. Foram expulsos. Para quê? Para esse tal de progresso?
Não, para que tomem seu dinheiro, roubem sua terra, sua cultura. E, ao invés de guardar e mostrar pra todos essa cultura, a escondem, bem escondido, lá no Inferninho, que ganhou o nome de Novo Paraíso. Nem para isso, dar nome aos bois, serviram.
São apenas forasteiros
Estou a viajar por mim mesmo. Sinto seu cheiro, embora nem conheça o seu cheiro. Mas ele vem nos ventos de abril, de maio, junho, julho e agosto, que batem em meu rosto.
“Sou poeta menor, perdoai”, escreveu Manoel Bandeira. Longe dele o alto diapasão do anglo-americano T. S. Eliot, por exemplo, um dos grandes poetas do século passado, autor de versos de alta densidade metafísica, enigmáticos.
“O tempo passado e o tempo presente/
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro/
E o tempo futuro contido no tempo passado”.
Janaúba é pão, pão, queijo, queijo.
Viu, Mô!

O gorutubano Jackson Antunes. Ou melhor, Joaquim, meu amigo!

Passe-me teu chapéu em lua de agosto/
dá gosto te ver chegar, escreveu certa vez Almir Rosa.
Pois era assim que ele chegava em Janaúba, naqueles anos de 1980. Vinha às vezes de trem, às vezes na boléia do caminhão, sempre que podia de ônibus, da sua belorizonte distante, onde escolheu para viver. Mas gostava mesmo era de viajar de trem...
Era uma viagem um pouco tranquila, um pouco nervosa, onde caminhava para o povo que se destinou, a lua branca iluminando seu caminhar.
Café com pão/
manteiga não... A máquina a disparar, o coração a repicar que quer chegar, quer chegar, quer chegar...
Era uma viagem mágica, principalmente quando ia chegando pelo lado sul, vendo os lagos, azuis ainda, grandes ainda, do Dente Grande. Aquela maravilha de cenário.
Voltava para ver seu povo, sua família, para correr atrás da vida com Paulinho Pintor, Walmir e Aldo Pereira. Formaram um quarteto gorutubano que, no final dos anos 1960, início dos 70, começou a pintar e bordar na cidade gorutubana, depois que um circo passou e nenhuma donzela foi atrás do palhaço. Faziam peças de teatro, faziam circo, faziam as pessoas rirem, as pessoas chorarem, as pessoas viverem outras estórias.
Era Jackson Antunes, que traz Janaúba no seu peito.
Onde está, lembra do seu povo, de gorutubanos como Donato Durães, do rio Kuruatuba, do Buraco da Amélia, de Quinzim dentista, de Zé Carlos Moreira.
Foi na voz dele, declamando Patativa do Assaré, em um boteco na chamada “savassi gorutubana”, que conheci, primeiro, os lagos do Dente Grande.
Depois, lendas das terras altas e baixas.
Como a de Alfredo Mendes Lourenço, que quando vaqueiro de Antônio Ramalhudo, deu sua alma ao Diabo para ser o maior criador das caatingas. Pois Mendes Júnior encheu de gado desde a barra do Rio Verde até as cabeceiras do alto Catuny, desde o Quem-Quem até o Bonito e Mamonas, além do Brejo das Creoulas.
Gado dele não morria, não adoecia e nem apanhava bicheira.
Foi Jackson também quem me contou a história de João Faustino. Depois que assassinou o Padre Vitório, vinha toda sexta-feira de quaresma do São José do Gorutuba para virar lobisomem debaixo da gameleira do povoado que um dia ia ser Janaúba.
Tentou, com ajuda de poucos, fazer um filme sobre o Padre Vitório, na década de 1980. Não conseguiu.
Mas as lembranças das filmagens passam na frente da gente. Principalmente quando a gente senta com Quinzim, naquele boteco em frente ao seu consultório, na avenida do Comércio, comendo espetinho, bebendo uma cerveja gelada, olhando as pernas das gorutubanas que passam.
Foi Jackson quem me mostrou a mulher gorutubana e me fez apaixonar pelas suas serras, pelas suas terras, pelas suas matas, pelas suas grutas e seu rio.
Por ali, inclusive, encostei meu corpo por ali durante anos. Não para descanso, mas para aprender mais.
E como se aprende com os gorutubanos...
O gorutubano Jackson Antunes, hoje, não precisa de apresentações.
Já seus parceiros daquele quarteto gorutubano, sim: Paulinho Pintor continua em Janaúba, escrevendo suas peças teatrais, entre uma de faixa pintura e outra, entre um gole e outro, no Inferninho... Ops, Novo Paraíso! Me visitou dia destes, preocupado, mas cheio de alegria para dar, nunca para vender.
Aldo Pereira, que nasceu em Mato Verde mas aportou um bom tempo em Janaúba, veio para Montes Claros ser radialista. Aqui continua escarafunchando o teatro. As pinturas de faixas e letreiros ficaram para trás.
Walmir resolveu ser político. Hoje é prefeito de Nova Porteirinha, em cima dos seus cento e muitos quilos. Mas confessa que queria ter continuado a carreira e ser um hoje, um ator. Global, de preferência.
O ator/cantador Jackson continua com a mesma paixão pela música e pelo teatro, que veio do circo que faziam na cidadezinha de antigamente. Cheia de poeira e de um rio de praias e água dos mais bonitos. Hoje, nem tantas são as praias daquele rio antes caudaloso. Pode-se contar nos dedos. Sua areia foi levada, não pelo vento, mas para se construir Montes Claros. Parece aquela história que o Dó contava: pecar na igreja sempre foi mais gostoso.
Jackson começou por causa e no circo. Tinha mais ou menos oito anos quando um circo passou em Janaúba. Ele se apaixonou. Certamente pelo lado teatral. Naquele tempo o circo era dividido em duas partes, a parte principal que era o espetáculo normal e a segunda, reservada aos dramas, ao teatro. Hoje, isto acabou.
Os dramas vivem até hoje na cabeça de Paulinho Pintor. Ele guarda em casa os escritos das peças encenadas naquela época. E conta com orgulho como eram.
O quarteto fez dramas, comédias, viajou pelas cidades da região.
Daí, Jackson pulou fora. Resolveu ir mais longe. Primeiro, Montes Claros, onde apresentou um monólogo que fez sucessos no Centro cultural Hermes de Paula. Depois, a capital. Sempre pintando suas faixas para sobreviver. Com a chegada da televisão, o circo sofreu um esvaziamento e ele foi fazer teatro amador. E apresentando em Belo Horizonte, levou a vida, até ser descoberto numa fita demô que enviara a Globo.
Aí, começou tudo de novo.
Mas antes, voltemos lá atrás.
Nascido em Janaúba, em 28 de agosto de 1960, não conheceu seu avô, um grande aboiador que morreu no dia de seu nascimento. Criança, Jackson saía acompanhando as folias de Reis de porta em porta. Quando tinha oito anos, a família ganhou um rádio comprado pela irmã e tornou-se costume ouvir as transmissões do Programa Sertanejo Classe A, da Rádio Nacional de São Paulo, e acompanhar as interpretações de duplas como Tião Carreiro e Pardinho, Cacique & Pajé e Sulino e Marrueiro, entre outras.
Havia uma energia louca naquele rapaz.
Na época da rádio Gorutubana - e que época! –, sempre que estava na cidade ia lá, dar seus palpites, uma espiadinha, uma conversadinha, aquele bate papo gostoso.
Nossos encontros, entretanto, foram rareando, já que mudei para Montes Claros e ele, logo depois, foi estrear a novela “Renascer”, e o tempo para Janaúba diminuiu. Daí, né, foram poucas as escapadas. Uma delas, em 2009, durante a festa de agosto, onde fez show supimpa.
Como ator, atuou em diversas novelas na TV Globo, entre elas “O rei do gado”, na qual interpretou o papel de um líder sem-terra. Mas isto é história para mais tarde.
Nem todos conhecem a outra face do ator Jackson Antunes, que costuma interpretar papéis rústicos nas novelas.
Mas ele é cantor, um cantador matuto, como se autodenomina. Aliás, sempre foi. Lembra do avô? Pois... O tempo dos dois por aqui foi curto, mas é eterno.
O primeiro CD, “Jackson Antunes canta Téo Azevedo” (1998), foi gravado em 1998, após sete anos de negativas de diversas gravadoras. Gravou em seguida “Jeitão de Caipira”, em dueto com o cantador e violeiro paulista Tião do Carro. Em 2000, lançou seu terceiro disco, “Jackson Antunes, O Cantador Matuto”, onde canta Luiz Gonzaga, que alcançou em pouco tempo a marca de 250 mil cópias vendidas, sem aparecer no Faustão.
Em 2002 participou do CD das Irmãs Galvão nas músicas “Cabocla Tereza”, de Raul Torres e João Pacífico e “Chico Mineiro”, de Tonico e Francisco Ribeiro. No mesmo ano gravou “Veredas do Grande Sertão”, lançado pela Kuarup.
Lançou pela Kuarup o CD “Pé de Serra”, com produção de Téo Azevedo. Paralelamente, atuou na novela “Terra Nostra”, da TV Globo, encarnando um cantador matuto.
E segue lançando seus discos, “Quanta Saudade Dá”, uma homenagem ao ator Mazzaropi, com destaque para a faixa título com acompanhamento de Zé Américo.
Não perde uma festa de Folia de Reis de Alto Belo, promovida pelo amigo Téo Azevedo. Participa desde 1998, sempre desfrutando de grande popularidade entre seus frequentadores, habitantes das adjacências ou proveniente do Norte de Minas.
Seu espetáculo musical “Coração Caipira”, rodou por quase todas as terras deste Brasilzão de Deus. Tinha um cenário tipicamente sertanejo, uma “vendinha”, onde o ator contracena com dois companheiros de viola, Decão e Marimbondo de Chapéu, que além da viola toca uma rabeca por ele mesmo produzida.
Como músico, Jackson nunca compôs uma canção. Diz que não se atreveria, pois “existem tantos compositores maravilhosos...”. Sua preferência é pelos compositores “caipiras”, Tião do Carmo a Teo Azevedo. Para ele, Tião do Carmo, é o violeiro mais importante do Brasil.
Sobre a origem da música em sua vida, ele mesmo responde. “Não tem como, é..., não ter essa convivência com a música, por exemplo a nossa região não tem o berrante, lá usa o “aboio” e existem várias modalidades de aboio. Ao aboiar produz-se um som de canto, que os boiadeiros acreditam, e eu também acredito, que eles conseguem se comunicar com aqueles bichos tão irracionais através do canto, como as lavadeiras de rio comunicam com o rio. Não tem como, e não há a diferença entre uma voz bonita e uma voz feia, lá no sertão a gente respeita todas as vozes. Toda voz é linda, toda voz é bem vinda, porque o canto vem da alma”. Precisa explicação melhor? .
Para o jornalista e escritor Jorge Fernando dos Santos, com o múltiplo talento de ator, diretor teatral e cantador, Jackson Antunes nos dá um exemplo raro de fidelidade às suas raizes. Ao invés de faturar fácil, gravando músicas descartáveis bem ao gosto da mídia, ele prefere emprestar sua voz e seu prestígio global aos clássicos da genuína música de raiz..
Além de ator, cantador, Jackson é escritor. Tem livros publicados e livros a publicar. Tem um hipnotismo na fala. E um dos grande momentos de Jackson como ator, entre tantos, foi quando interpretou o matador que se apaixona pela vítima em “Memória de Embornal”, dirigido por Tizuka Yamasaki. O monólogo, de autoria de Íris Gomes da Costa, apresentava uma brasilidade de linguagem única. É a história de Zé Cabriolé, um “cabra matador que atira té com os pé...” Um dia ele recebe a incumbência de matar uma mulher. Para conhecê-la, recebe uma foto, mas se apaixona pela imagem da mulher do “retrauto”.
O espetáculo refaz o gosto pelo simples, pela poesia das palavras, pela sedução da linguagem popular brasileira. A interpretação de Jackson emociona e me impressiona.
Jackson participou de novelas diveras, “A Padroeira”, “Terra Nostra”, “Pecado Capital”, “Anjo Mau”, “O Rei do Gado”, “Irmãos Coragem”, “Renascer”... dentre outras! E de seriados como “Aquarela do Brasil” e “Memorial de Maria Moura” e do especial “Brava gente - “O diabo ir por último”.
Outro momento que marca é um relato feito em uma revista (que nem sei mais qual é): “Se encontro na rua um garoto negro, ou com deficiência física, e ele me pergunta se deve tentar a TV, tenho vontade de responder que não. A TV está cheia de closes que parecem quadros pintados, com muitos olhos azuis e peles de bebê. Chega ao ponto de anunciar um ator como a barriga mais bem malhada!”
Este é o gorutubano Jackson.
Ou melhor, Joaquim, meu amigo!

I want to hold your hand

Era início dos anos 60. A montesclarina província estava em marcha lenta. O bairro São José acabava ali, na rua Gregório Veloso. Depois, só uma trilha nos levava até o morro onde seria construído o DER. E ainda tinha aquela pinguela para atravessar, do rio de esgoto que passava ao lado do colégio São José. Ou então, se pulava!
Do outro lado da cidade, o bairro Todos os Santos começava a ser formado. Também uma pinguela, feita de uma árvore tombada, nos deixava atravessar o rio dos Vieira. Onde hoje está o Elos Clube, dos portugueses, ficava um dos nossos campinhos de futebol preferido. Tinha outro, mais abaixo, perto de um pé de araçá, onde nosso time, que tinha Márcio Hiran como artilheiro, enfrentava o de Marquinhos, que vinha com seu irmão, Márcio, como beque central.
Haviam gangues sim, naquela época! A nossa era da igrejinha do Rosário, que, derrubada, estava sendo, pouco a pouco, reconstruída. Ali era nosso quartel general. Tinha também a do Paulo Bobão, perto da Santa Casa (ele era uma dissidência nossa. Criou sua própria turma após mudar da Coronel Prates). E do Marquinhos, perto da rua Irmã Beata. As gangues brigavam. Muito! Mas no futebol. Quando não nos campinhos da nossa infância, durante o dia, na rua Coronel Prates, em cima dos paralelepípedos, a noite. Disputa da grossa. E com muito machucado, dedão do pé ferido, pois a maioria jogava descalço.
Uma das imagens que me vem agora, na lembrança, daqueles anos 60, é aquela da lata de sopa Campbell, de Andy Warhol. Ou o filme “Ben Hur”, com Charlston Heston. O Cine São Luiz, onde Baltazar, pai de Gêra Brandão e Luiz Carlos, vez por outra, nos deixava entrar de graça.
O Rays era quem levava para casa livros, revistas e discos. Os discos, preferencialmente, da nova música, o rock do Roberto Carlos. Fez até uma camisa vermelha, igual àquela em que ele aparecia na capa de um LP, o do Calhambeque. Bip-bip! Pai ficou retado, mas acabou concordando com as modernidades que começavam a nos aparecer. Era a vida que mudava naqueles anos de 1960. Também músicas de Elvis Presley, livros e revistas com fotos de Marilyn Monroe, os catecismos do Zéfiro, apareciam em casa. Fiz uma pequena coleção de revistas e livros. Mas uma das namoradas do Rays - acho que irmã ou prima do José Vasconcelos Câmara - disse que eu não podia ler aquilo. Pegou tudo e sumiu. Deve estar no seu quarto até hoje, pois logo depois ela e Rays se separaram. Praga de irmão. Hoje, minhas revistas, livros e catecismos devem servir, pelo menos, como souvenir para ela.
Lembro que pai, fã de carteirinha do presidente Juscelino Kubitschek, não foi na inauguração de Brasília, a nova capital do país. Mas comprou todas as revistas da época, Manchete e Cruzeiro, que até hoje estão guardadas.
Só no final daqueles anos de liberdade vigiada (afinal, os milicos pegaram o poder em 64), foi que descobrimos o movimento hippie, que pregava a paz e o amor, através do poder da flor (flower Power), do negro (black Power), do gay (gay Power) e da liberação da mulher (women’s lib). Os anos 60 foram de manifestações e palavras de ordem. Elas mobilizaram jovens em diversas partes do mundo. Inclusive na provinciana Montes Claros, que mudava de cara pouco a pouco. Em marcha lenta, é claro.
Foi nesses anos de mudanças, que ganhei meu primeiro jeans americano, o básico da moda de rua. Uma calça Lee, que desbotava e perdia o vínculo com as roupas normais. Presente do irmão mais velho. Aquilo dava liberdade e rebeldia.
Estudava no colégio São José. Indo ou voltando, passava pela zona, na padre Augusto, no fundo do antigo cemitério. Que delícia aquela mulheres com seus peitões nas janelas, nos chamando para nos tirar a virgindade. Aquela troca de olhares e aquela proibição juvenil. E que medo!!!
Irmão Jaime Damião batia em nossas mãos com aquela varinha de pescar. Seria sua varinha de condão. Por qualquer motivo: se não respondêssemos em francês, se participássemos de reuniões “obscuras”, como classificava as reuniões no DEMC de então. O montesclarino participava do movimento estudantil, que acabou explodindo e tomando conta das ruas em diversas partes do mundo. Contestávamos, aqui também, a sociedade, seus sistemas de ensino e a cultura em diversos aspectos, como a sexualidade, os costumes, a moral e a estética. E sobrava muito para mim. Sempre apresentava versões diferentes daquela mostradas nas aulas. Seria rebeldia?
Irmão Ladislau Figueiredo talvez achasse que fosse. Me chamava sempre a sua sala para pregar o “estabilismenth”. Mas não dava! Jornais, como o Correio da Manhã, revistas, como Realidade, nos abria a cabeça para outras coisas. Tanto que, no começo dos anos 70, quando já se tocava “Je T’aime, ma non plus”, “pediram” para que fôssemos trocar idéias em outras escolas. E lá fui para a Escola Normal... Onde encontrei com Celso Leal, Manoel Oliveira e Jaime Cruz. Para trás ficavam 11 anos de São José, e uma vida de estudos.
Em Montes Claros, mesmo em marcha lenta, também lutava-se contra a ditadura militar, o que iria mais tarde resultar no fechamento do Congresso e na decretação do Ato Institucional nº 5. Não se lutava como no Rio ou São Paulo, pois o Coronel Georgino marcava pesado. Mas lutava-se quando ele piscava...
A cidade seguia sua vida de interior. A renuncia de Jânio Quadros nos caiu menor que a morte de John Kennedy. Na casa de tio Geraldo e tia Edi, junto com Márcio, Tereza e Bete, torcíamos pelo Brasil na Copa de 62. Tia Edi amarrava o “rabo do diabo” embaixo de mesas, e sempre saia gols. Foi lá também que, em 65, nas tardes de domingo, assistíamos, numa TV preto&branco, cheia de chuviscos, a Jovem Guarda. E, mais e mais, a modernidade nos chegava. No cinema, Belle de Jour, com Catherine Deneuve, Bonequinha de Luxo, A Doce Vida do Fellini, até O Pagador de Promessas, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes.
O tempo passava. As quintas-feiras, que antes eram de almoço na casa dos padrinhos Elias e Zita Camargo, na Gregório Veloso, ficavam para trás. Elias já me servia uma Gin Tônica, e os quadros nas paredes pareciam mais interessantes. Eles moravam ao lado da casa do professor Raimundo Saturnino, pai do (até hoje) inquieto Paulinho Manga-Rosa. Que dupla: Manga Rosa e Perereca! Nunca chegamos a jogar, naqueles anos, pelo mesmo time de futebol. Embora jogássemos sempre no mesmo time de coração. O almoço da quinta era bife a milanesa com banana frita. Uma delícia! Feita pela Geralda, irmã de Belinha Grande, filha de Vó Mariinha, que morava na Malhada das Almas.
Não só Roberto, mas também os Beatles já rodavam na vitrola enquanto nadávamos na piscina do Max-min. Ou íamos em excursão, com tio Geraldo, para Pentáurea, aquele local longe, cheio de areia movediça, intocável. Foi na casa de tio Geraldo que escutei, pela primeira vez, o lp Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Que tapa na cara! O que era aquilo? Que música diferente, interessante, desbundante era aquela? Foi ali que começou tudo! Ou continuou...
E vieram filmes como Barbarella, com Jane Fonda. O disco Tropicália, ou Pane et Circenses, do Caetano Veloso. E 2001, Uma Odisséia no Espaço, do Kubrick, ali, no Cine Fátima. Os matinês do início da década, que formavam filas imensas no Cine Coronel Ribeiro, por causa dos seriados, ficavam para trás. A música já era outra, não aquele roquezinho do Calhambeque e de blusas vermelhas.
Para o desbunde ficar maior, Woodstock aparece! Eram três dias de paz, amor e liberdade. Nas telas, Easy Rider, sem destino. Com eles, porém, nos chega a morte chocante de Sharon Tate, esposa do Roman Polanski, naquele agosto de 1969. Aqui, Carlos Marighella era assassinado, em 4 de novembro daquela ano. A ditadura mostrava que não ia embora. Que ia nos incomodar, queria ou não Coronel Georgino.
Talvez o que mais tenha caracterizado a nossa juventude naqueles anos 60 tenha sido o desejo de rebelar, a busca por liberdade de expressão e liberdade sexual. O surgimento da pílula anticoncepcional foi responsável por um comportamento sexual feminino mais liberal. Porém, elas também queriam igualdade de direitos, de salários, de decisão. Até o sutiã foi queimado em praça pública, num símbolo de libertação. Os 60 chegaram ao fim, coroados com a chegada do homem à Lua, em julho de 1969. Woodstock Music & Art Fair, em agosto, reuniu cerca de 500 mil pessoas em três dias de amor, música, sexo e drogas.
Mas aqui, nestes montesclarinos sertões, todos achavam que a cidade continuava a andar em marcha lenta.
Mas era pura mentira!
Eu já pegava em sua mão...!!!

Os deuses nos livram de sermos solenes

A moeda número um de Tio Patinhas não é minha. mas vou sonhando até explodir colorido. Nada no bolso ou nas mãos.
Isto é música de Caetano Veloso, e cantada na sua despedida do Brasil, naquele famoso show Barra 69, no teatro Castro Alves, fica mais déjàvu ainda. O Du Brasil pode confirmar se foi lá mesmo.
Já faz tanto tempo.
Ouvia o disco em sua casa, quando ainda morava na Rayo Kristoff, na década de 1970.
Era época de Daga, do Luiz Carlos, irmão de Gêra Brandão, que ainda não tinha paixão pela Fatel.
A gente se reunia, às vezes para falar de música, às vezes para falar da vida, às vezes só para curtição mesmo. Um cheiro de patchouli no ar.
Estávamos com 17, 18 anos, o mundo era todo a nosso favor.
Pelo menos pensávamos assim, metidos a hippie que éramos, esquecendo da revolução que acontecia do lado de fora, na rua.
Tinha também o disco do Geraldo Vandré, em que ele cantava “Pátria Amada, Idolatrada, Salve Salve”.
Havia concorrido com a música em um festival no Chile (que tinha o Allende e onde tudo “também” era permitido).
O Luiz, irmão de Gêra, já morava nesta época em Brasília. Era ele quem conseguia estes LPs por meios ilícitos (como o Barra 69 de Caê e Gil), e a gente curtia junto com o que era lícito na vida.
Nas conversas, “inteligentes” demais que éramos, discutíamos sobre psicologia, sexo, política, religião, Jorge Amado, João Rosa, as crônicas do Felipe Gabrich e por aí afora.
Transgressão positiva!
Afinal, um pouco de frivolidade é necessária, pois os deuses nos livram de sermos solenes.
Os papos varavam noites.
Às vezes, até dias.
Uma cachaça aqui, um cajá-manga de tira gosto (do pé no quintal da casa de Gêra).
Às vezes o papo ia para praças, andanças pelos caminhos que o rio Vieira (ainda não havia a avenida Sanitária, mas apenas o córrego que começava a ser poluído) nos levava.
Subíamos a serra e acampávamos em nosso local predileto: a cachoeira (que existia) onde hoje é o parque do Sapucaia.
Entre músicas tocadas no velho violão, reavaliávamos a vida ou reinventávamos a vida. Do alto dos 17, 18 anos, mesmo tendo apenas uma idéia difusa sobre ela.
O que era certo era a morte estar empoleirada em nosso ombro, espiando com seu inquietante olho de coruja. Como foram dourados aqueles nossos anos...
Mas o tempo passou, como o tempo passa. Ricardo, Gêra, seu irmão Luiz e tantos outros foram para outro andar.
Continuamos, às vezes com os mesmos pensamentos, mas com cinco décadas nas costas. Ouvimos hoje às mesmas músicas? Talvez...
Dia destes estava comentando com Brasil sobre a editora Sapo na Muda.
Idéia maluca, de se fazer uma rádio que toque coisas nossas (principalmente que não deixe perder as raízes não só norte-mineiras, mas mineiras mesmo), uma editora que lance livros de gente que está ao nosso lado, sem condições, e uma gravadora que revele não as coisas da terra, mas as coisas aqui feitas.
Existe até mesmo um primeiro CD pronto, gravação histórica do Sérgio Sampaio, aquele do “Eu quero é botar meu bloco na rua...”
Mas a coisa não é fácil não, como diz Reinaldo Corby.
Hoje levantei para escrever sobre o amor.
Ou melhor, para revisar o que escrevi sobre o amor
Sobre você, minha companheira, que como uma planta teimosa cresce cada dia, e se enrosca no meu único tronco.
Hoje era para publicar algo sobre o nosso amor, escrito há uns três, quatro meses, e colocado na pasta Pessoal&Intranferivel.
Pois vai ficar lá mais um tempo, pois ainda está imperfeito.
Pergunta João Rosa em Tutaméia: amar é querer se unir a uma pessoa futura, única, a mesma do passado?
Parece estranho o ensinamento, mas por quê não?
Venho cheirando a minha entidade favorita, mas ela não fala nada nas noites sem sono.
Só Rafael, com suas visitas aos espíritos, pode nos responder mais sobre isso.
Ensinou Rosa em Grande Sertão: Veredas - quem ama é sempre muito escravo, mas não obedece nunca de verdade.
Lya Luft revela que, além disso, a tranqüilidade dos sábios não é tão fácil.
Não queria ser sábio. Na verdade, nem sou.
Quero só a tranqüilidade do maluco beleza Raul Seixas que colocou num papel: o pouco-a-pouco é um porto seguro.
A bênção, dona Maria!
E obrigado por tudo.
Principalmente pela proteção.

O temário das lembranças fala, mas falha, falta

A gente sabe que está ficando velho quando começa um texto: “eu sou do tempo do….” Pronto, falei!
Acho que isso me passou por causa de uma incumbência que o João Rodrigues me passou. Voltei no tempo passado e continuei no atual ao mesmo tempo em que o tempo passava. Agora, vamos em frente.
Como eu dizia, eu sou do tempo em que as crianças não tinham opção por religião. Tinham que fazer curso de catecismo, confessar aos sábados e ir à missa aos domingos, comungar (em jejum de cinco horas) e seguirem católicas.
Eu quase fui para o seminário, iludido que poderia ter poderes sobrenaturais. Não fui santo. Nem sou. Um crente descrente, talvez. Ateu que acredita em Deus. Mas isso não era um problema. Haviam outros…
Por exemplo, um dos grandes problemas era encarar uma confissão e dizer que fez ‘aquilo’ no banheiro. Ou, pior, que participou de um festival de punheta no fundo da casa do Arthur Tutuca Ramos, na Praça Portugal. E não ganhou o primeiro lugar.
Quem papava sempre o premio era o Carlinhos Rebucetê, que via o futuro com a palma da mão. Ele, como Gravatinha, que veio depois para a turma da Igreja do Rosário (Ico, Tutuca, Paulo Bobão, Marciram, Taninha, Rebucetê, Miguel, Gualter, entre tantos), acreditava piamente em seres do outro mundo - sejam ET’s ou fantasmas. Morreu de medo.
Essa coisa, a morte pelo medo, ficou em minha cabeça muito tempo. Alguma coisa transando entre os neurônios, umas joiazinhas de iluminação.
Rebucetê foi o primeiro amigo que vi morto, no caixão, esticado, durinho e frio (dizia Taninha, pois nunca peguei num morto). Aquele velório triste, onde não havia cruz, nem oração, nem recebeu a visita do padre. Ele havia se enforcado.
Um poeta, não só pelo que fazia com as mãos, mas pelo que nos transmitia com suas idéias e viagens cósmicas. Em sua carta de despedida, disse que morria por não conhecer os mistérios da vida e ter medo dos fantasmas que nos habitam.
Também tenho meus medos. Por exemplo, nunca encontrei com um ET. Se desse de cara com um, não sei se seria abusado ou abusaria.
Fantasmas, estes vivem a me rondar - ou a ronronar. Passam, me olham, acham que vão perder tempo comigo, e cascam fora.
Uma vez escrevi para um amigo que havia partido, Edson. Ele estava numa depressão brava, não sei se foi embora por querer ou não. Tomou uns remédios, depois de beber umas. Partiu, simplesmente, não sei pra onde... Não deixou carta, bilhete, nem nada. Talvez, ainda pensasse em acordar dia seguinte. Acordou morto.
No poema que lembrei dele. Melhor, fiz para ele. Dizia que se quisesse me encontrar, não chegasse de uma vez. ‘Não, eu não gostaria de acordar a noite/ e te encontrar feito um fantasma/ a vagar pela casa./ Talvez, quem sabe,/ fosse melhor te encontrar de relance,/ te ver num bar - e não ver,/ coçar os olhos na esquina/ e você se perder na multidão’.
Às vezes, agradeço a Deus por que talvez seja esse modo pelo qual meu medo se redime e eu não me perco.
A turma do Igreja do Rosário era tão unida como o anjo de Georgino Jorge de Souza Junior, Orinella, que não conheci mas escutei casos que, segura a ponta da mesa e mastiga as sílabas em sua língua.
As calças curtas, a rua de paralelepípedos como campo de futebol, a igreja em construção, a turma do Marquinhos, perto do rio Vieira, o campinho pra lá da casa de Carlão, aonde a gente ia passando por uma pinguela sobre o rio, para jogar futebol. Os filhos do José Mário enxertavam nosso time. Que nem sempre vencia.
Às vezes, a gente retroverte no tempo, lembra até do pé de Pitomba, que nascera com Montes Claros na Rua Gonçalves Figueira. Cadê ele? Deve ter sido derrubado.
Por ali, descendo a Gonçalves Figueira, passávamos pela casa do Teixeira Bastos, atravessávamos a ponte do Vieira, tentávamos roubar umas uvas no ‘sitio’ de Antonio Narciso Soares, para depois ir nadar no Pai João. Ainda que infestado de esquistossomose, era ali, naquela piscina natural, que a gente ficava mais alegre do que nas piscinas da Praça de Esportes.
O Vieira também era limpo, a partir de certa altura, no Melo. Tinha poços ótimos. Lembro-me muito da Lajinha, hoje sepultado e selado.
Era um mundo diferente aquele, na década de 1960.
Se a gente se comportasse bem, aos domingos, no Bar Sibéria, na esquina da Dr. Veloso, em frente ao Clube Montes Claros, “sêo” Novaeszinho me dava uma “Caçulinha”, ou guaraná R&C. Às vezes, levava para almoçar no Restaurante Mangueira, na Dr. Santos. Às quintas, porém, tinha encontro marcado com o pai, para tomar a canja de galinha no Mangueirinha, na Afonso Pena com Padre Augusto. Ele tomava sua Brahma e uma pinguinha. Eu, uma Grapette.
No Intermezzo, só fui quando cresci mais e já existia o Espeto de Ouro, ao lado da nossa casa da Dr. Veloso. No Valério, era só em ocasiões especiais. Como quando mãe ganhou um concurso do A.R. A comemoração foi lá.
Mas quando sobrava um dinheirinho da mesada, eu ia mesmo era pro bar e sorveteria Cambuy, em frente ao Cine e Teatro Fátima. Ali me maravilhava com frutas só vistas quando ia a Belo Horizonte. Tinham doces, queijos, presuntos, nozes, castanhas. Meu sonho de consumo naquela época.
Naquele tempo, tínhamos relíquias como Tuia, Parsival de Almeida, Ateneu e Casimiro de Abreu.
Tínhamos os dribles de Manoelito, Manoelzinho, Chinesinho, Jomar e Bispo.
Tínhamos Mané Nunes (Quatrocentos), Sabú, Mundinho Atleta e sessões de cinema no Coronel Ribeiro, São Luiz, Ypiranga ou Fátima.
Foi ali que assisti Yul Brinner e Gina Lolobrigida em ‘Salomão e a Rainha de Sabá’, e Ben Hur, com Charlton Heston. Quando passou Macunaíma, não consegui entrar no São Luiz nem no Coronel Ribeiro. Era barrado pelo Comissário de Menores Zé Idálio. Assisti no Ypiranga, pois ali ele não ia. Depois, consegui gravá-lo numa fita de vídeo e, vez por outra, volto a deliciar-me com Paulo José e Grande Otelo no papel deste anti-herói (?) nacional. O Cine Montes Claros que conhecemos, chegou depois, com som saindo de todas suas paredes.
Pai comprou seu primeiro fusca na Somar, na Carlos Gomes. Foi Tio Geraldo quem estava com a gente quando fomos buscá-lo. Tio dirigiu até os Santos Reis, deu a direção pro meu pai e ele trouxe de volta. Mais nunca largou. Aprendeu assim, num estalo. Rays apelidou o carrinho de ‘calça Lee’, pois descorou com ciúmes do outro fusca mais azul que pai comprou, anos depois.
Dos onze anos estudados no São José, além dos amigos todos que repartem ainda hoje meu coração, ficou a música particular ensinada pelo irmão Jaime Damião:
Frere Jacque, Frere Jacque/
Doure vous, Doure vous/
Solere Martine, solere Martine/
Dim, dim, dom/
Dim, dim, dom. Também, as idas até a escola de datilografia do pai do Luciano Meira, a Remington Rand, para ver se aprendia alguma coisa. Aprendi mesmo com uma Olivetti lá me casa, e até hoje uso somente os dois dedos para digitar ou datilografar.
O temário das lembranças fala, mas falha, falta. Nosso mundo não era tão grande.
Nosso mundo era bem pequeno.
Nosso mundo era nosso.
Não tenho bola de cristal.
Apenas ouço o Tino - tenho pena de nós dois.
Mas é por isso que todos vivem assim.

Porém com todo respeito, te carrego no meu peito

Tive um sonho, dia destes, com o Chico Buarque de Holanda. Não, não foi o sonho medonho desses que às vezes a gente sonha e baba na fronha e se urina todo e quer sufocar. Foi um sonho maneiro, mineiro, calmo, tranquilo, destes que a gente sobe a construção como se fosse sólido e ergue no patamar quatro paredes mágicas, tijolo com tijolo num desenho ilógico.
Não sei por que cargas d’água – sonho a gente respeita – Chico fez um show numa cidade do Norte de Minas e fui assistir. Liguei pro Chorró, fã condicional do compositor (não se esquecendo que ‘todo compositor brasileiro é um complexado’, como ensinou Tomzé). Nos encontramos ao lado da pensão que Chico estava hospedado com seus músicos. Pensão? Parecia a Pensão Nossa Senhora Aparecida, que existiu certa vez na Avenida do Comércio, em Janaúba. Mas a cidade não era a gorutubana, embora aquele pedaço lembrasse o Buraco de Amélia. Tentei que Inês fosse – ela estava numa roda de pagode – mas preferiu pagodear. Chorró levou Margareth.
Nos encostamos a um muro, em frente ao jardim da pensão, e ficamos curtindo ele lá, cantando. Se lembra quando toda modinha falava de amor/ pois nunca mais cantei, oh maninha/ Depois que ele chegou...
Como todo sonho deixa seus saltos, seus brancos (e até seus negros), e nem sempre a gente sabe como eles vem ou vão, já estávamos os três na sala de estar da pensãozinha, que agora parecia o hotel da mãe do Noriel Cohen, na rua Dr. Santos, em frente ao Bar do João e do Prontocor. Conseguimos falar com Chico, a quem chamei de “Seo” Francisco, com toda pompa e circunstância da música clássica que me vinha aos ouvidos naquela hora. E, ao invés do Chorró se derreter em lágrimas emotivas, isto aconteceu comigo. Chorei copiosamente quando Chico me abraçou. Gosto do Chico, de tudo que foi e é o Chico, de tudo que nos ensinou o Chico, mas sou fã do Caetano. E do Tino. Mas naquela hora, além de lágrimas, suas músicas tiritaram em minha cabeça. Da primeira, a Banda, que me levou aos tempos de minha mãe e tia Edi, mãe da Tereza Cristina, Márcio Hiram, Bete e Marcelo. Elas cantarolavam-na enquanto cozinhavam. Ou fritavam um bife. Acebolado.
Acordei com o verso ‘A minha gente sofrida’. Acordei com minha gente sofrida na cabeça. Essa gente sofrida que pede esmola na esquina, que morre na contramão atrapalhando o sábado, que não sabe amar, que vive por viver sem saber o por que. São as Sônias, Lucianas, Valdir; Cândidas, Lourdes, Felipe; Homeros, Rossinis, Terezinha; Mirim, Vanderley, Fatinhas; Lucias, Romanas, Waldomiro. São tantas pessoas.
Montes Claros está cheia de gente sofrida. Basta ler algumas páginas dos jornais. Pare nas páginas de Polícia e Sociedade. Morte, depressão, violência, gente sem vida. Nego humilhado, morto-vivo, flagelado. E não é sonho.
Da janela na copa das árvores vejo o dia envelhecer cinza, envolto num véu de bruma, dando tapinhas nas costas das casas, que respondem acenando luzes nas janelas. E a noite vai caindo lenta e jovem. É a hora mais linda e triste dessa minha terra, o lusco-fusco, a hora do Ângelus. Me lembro de um amigo meu, que não vale citar o nome, me perguntando se já fumei maconha. Ele conta que fumou a primeira vez e não sentiu nada. Sua noiva lhe perguntava, a toda hora: cadê o tapa? Cadê o tapa? E ele, com aquela cara engraçada, olhando para ela, rindo... Que tapa?
Outro, João, na época em que trabalhei na Transit, 1975, teve dois processos na polícia. Um como comunista. Outro como facista. Ele jogava mesmo os pobres contra os ricos. Chegava numa cidade, Varzelândia, Várzea da Palma, Cachoeirinha, fundava logo um clube para as pessoas mais humildes e pobres com tudo que o clube dos ricos tinha. Numa destas cidades aí, teve que sair de noite, escondido na boléia de um caminhão. Não sei hoje onde se encontra o João, que morava na Avenida Cula Mangabeira. Se apenas militou, se apenas o militaram. João sumiu, e pode nem estar mais neste reino da terra. Nem recebeu uma moda de viola ou virou folclore. Esqueceram dele. Estes militares...
Assisti uma vez uma senhora da sociedade nossa procurar um pastor e, para agradecer uma cura através de bênção, arrancar brincos, anéis, pulseiras e deixar tudo para a igreja. Eu nunca vi tanto dinheiro como tinha aquele pastor, que também era vereador e relojoeiro. Ele mandava pro banco o dinheiro em caixas de sapato. Tenho idéia de fazer um livro sobre este dublê de pastor e político. Era uma figura interessantíssima, amiga dos ricos.
Meus tios Eudipson, Euderson, Eunilson, Euridson, Duque, Oraide, Eulidson e Geraldo, foram embora da terra montes-clarina. Pai, Novaes Novo, ou Novaeszinho, foi o único a ficar, a ser enterrado junto com meu avô, João, o Novaes Velho. Angélica mora hoje no cemitério do Bonfim de Belo Horizonte, junto com Oraide, ali enterrada há um mês. João, no Bonfim de Montes Claros. Devem ter se encontrado no infinito eterno. Já pai e mãe ficaram juntos com o Rays. Muito da saída de meus tios das terras montes-clarinas veio do que aconteceu com João nos anos 1930. Principalmente num cemitério da cidade, a mando de Dona Tiburtina.
Tio Messias, que não entrou na cota dos tios anteriores – assim como tio Francisco – era otimista com relação às pessoas. Achava-as sensíveis à verdade. Se existia um dramão, ele discutia, resolvia. Pelo menos aparentemente. Para ele, se as coisas ficarem fechadas não entra ar, não tem possibilidades, não há o ponto-chave. Tem gente que fala tão mal da vida dos outros que dá até íngua.
E as tem as pessoas da cidade. Você já teve a curiosidade de conversar com elas? Por exemplo, Luzia. Diz: “lá no meu bairro tá faltando água. Lá em casa vai água duas vezes por semana. Ai, como eu fiquei velha depressa aqui em Montescraro. Nossa Senhora! Quando eu vim de minha terra era uma menina!” Já Antônio: “não acha um absurdo uma pessoa vir desse interiorzão pra se tratar em Montescraro? Sabe o que tenho mais medo? É procurar um ponto-socorro porque nem todo ponto-socorro atende a pessoa na hora. É difícil. Eu tenho visto aí a gente paga isso aquilo, precisa ir ao ponto-socorro tal e quando chega lá o filho tá morto”.
Marilda: “você escreve muito, é? Qual a linha que adota para escrever? No meu caso estou na linha do realismo fantástico. Será que a gente tem que se preocupar em ficar dentro de uma linha? Acho que não. Acho que a gente tem que escrever escrever escrever até com certa humildade para ver qual a linha final”. Helena: “No momento eu me sinto mal em Montescraro. Nos últimos anos, esta cidade se transformou numa cidade completamente ressecada, desumanizada. Pra gente não se estender muito sobre isso, vou te dar um exemplo que acho contraditório, desumano. Eu sou uma pessoa que gosta muito de música. Desde que me conheço. E hoje isso é um fenômeno massacrante. Tem a cidade invadida pela música de uma maneira insuportável, utilitária, e onde ninguém mais presta atenção a ela. Carro de som nos barzinhos, bicicleta de som pelas ruas, o som das casas de discos... Isso neutraliza completamente aquilo que a música pode significar para o homem”.
Jorge: “você já fumou maconha? Eu fumei uma vez mas no senti nada”. Seu Zé: “não gosto desta cidade, se eu pudesse voltava pro campo. Lugar de sossego pra criar família honesta é o campo. Aqui há coisa que não serve pra uma família assistir. Não conto com um filho honesto. Conto com um ladrão um perdido que não aprende nada. Só malandria”. Mauro: “Aqui, sábado e domingo, cai tudo na safadeza. Já foi no (...)? Vai todo mundo. Bicha, mulher, safado. A gente baixa lá pra sentir aquele treco. Agora, quem tem dinheiro vai pra boates. Meu derivativo é pinga e mulher. Tem outra coisa, gostei de uma menina. Não casei. Medo de chifre. Das safadezas. A maldade é muito grande. Fiquei sem vergonha mesmo. Ela sai com todo mundo. E come comigo”.
Lembra de Tom Zé? Aquele, de ‘todo compositor brasileiro é um complexado’? Pois é dele também o verso
‘Porém com todo defeito
Te carrego no meu peito’

Ela é alguma coisa no caminho, ela sabe

Era um bordel nublado por cigarros e poeira da rua sem asfalto, que cruzava com a Melo Viana. Correia Machado?, pergunta alguém. A janela dava para o quintal daquela casa de encontros onde homens sentavam em mesas antigas, algumas quebradas. Pelas mesas passavam velhas raparigas como o tempo e novas meninas com tempo.
Naquele quintal tinha um pé de goiaba, talvez das brancas, talvez das vermelhas, não dava para se saber qual. Nunca ganhou uma, nunca pediu à dona daquela casa suspeita, embora, nas raras vezes que chegou a janela, viu algumas bonitas, grandes, que enchiam sua boca d’água. Chegava a falar oi com a dona, que tinha uma bunda medonha e uma cara de sonsa. Só a cara.
Abria-se pouco aquela janela da casa. Talvez para não enxergar naquele espaço - que deveria ser o bar do bordel -, homens e mulheres fazendo safadeza. Conhecia algumas das moças. Tinha Iaiá, procurada durante o dia para derrubar vermes de criança, praguejar bicheira, benzer verruga naquele espaço de cidade. Tinha Anita, que gostava de uma trepada e, por tanto gostar, foi parar ali, tão logo passou a lua de mel e ver que o marido não agüentaria seu fogo. Tinha Juve que gostava de ir ao botequim com um vestido de cetim, um pouco solto na cintura e sem roupa de baixo...
Perto dali uns cem metros mal medidos, ficava um botequim, onde os filhos de dona Linda ganhavam a vida. Não tão limpo, não tão sujo, um botequim. No canto, sempre havia um bêbado (Luiz Gastabala?) que rabiscava versos num papel antigo (Rafael?), daqueles de embrulhar carne.
A Melo Viana (Melviana para alguns) ganhou este nome, dizem os historiadores de plantão – e como a cidade os tem -, porque por ali fugiu o então vice-presidente da República, Fernando de Melo Viana, naquele seis de fevereiro de 1930, escapando dos tiros de Dona Tiburtina, João Alves e da tropa.
Para Marquinhos 98 aquele espaço era o paraíso. Marquinhos ganhou o apelido por ser o carnavalesco do Grêmio Recreativo Escola de Samba Destak – e, dizem, se parecer com Joãozinho 30. Consertava nas horas vagas, sofás e hoje aluga DVDs. Segue a vida como o Cônsul Geral do Reino dos Países Baixos dos Morrinhos de Nosso Senhor do Bonfim de Dona Germana.
Para Leya Bloodymary aquilo era o submundo romântico de Montes Claros por onde, vez ou outra passava a caminho da Ladeira Cônego Quirino. Ali perto existiam muitas casas de encontro, algumas melhores, algumas piores, apenas casas de encontro com suas mulheres cansadas, de olhar morto durante o dia, mas que estavam pintadas e putas à noite. Prontas para fazer o que tinha que ser feito.
Naquele Reino dos Países Baixos tinha sacanagem, malícia, putaria. Isto sempre atraiu Leya Bloodymary. Faltava só um show de Kurt Weill. Aquele pedaço de terra de Montes Claros era o lugar de encarar temporais e enfrentar marginais, brigar em bares e saquear corações. E Leya sabia fazer isto muito bem.
No bar da mãe de Marquinhos 98, o Destak, aquele pontinho preto no mapa da cidade, estavam aqueles de vida errante, entregues a qualquer paixão, à deriva dos sonhos prometidos. Ali se podia marcar encontro com o pecador confesso, o clandestino moderado, o traficante sem medo.
Ou com o herói do botequim, que roubava flores no jardim da solidão para oferecer à namorada de um amigo velho – ou novo, não importava nem mesmo se fosse amigo. Mesmo aquele que conhecera ali naquele instante que parecia perdido no local e estava com a mulher ao lado, a mulher que é de seus sonhos naquele momento em que a bebida faz a razão se encontrar com a rota das sereias, as iaras que cantam em nossos rios. É imoral, indecente, fuma demais, bebe demais, ouve Maisa demais. Mas sempre oferecia uma flor – de preferência, uma rosa – àquela que seu coração mandasse. Quem diria que somos limpos e sem defeitos, a imagem e semelhança de Deus?
Ali era o paraíso dos compositores desgarrados e dos poetas malditos. E os começos, meios e fim! Aquele pedaço da cidade era cheio de xavequeiros, vagabundos elegantes, canalhas românticos, do boêmio trovador, e daquele de cabelo calculadamente desarrumado, o michê. Era ali que Leya Bloodymary amava ficar. Era ali que gostava de viver. Leya, último de uma linhagem de heróis da cidade, que tinha até o busto do avô na pracinha. Fica cada vez mais claro que o tempo presente e o tempo passado talvez estejam ambos presentes no tempo futuro, como achava T.S.Eliot.

O sertão de Cícero Billie Joe

Escutando novamente o CD do amigo velho Cícero Billie Alves (Volume III – Os Originais não se Desoriginalizam) pode-se comprovar que o velho roqueiro não perdeu a ternura, mesmo rolando por pedras tão estranhas, como estas que se encontram nas areias do Rio Gorutuba.
Afinal de contas, e posso falar de cadeira, o Vale do Gorutuba - que faz parte do Vale do Verde Grande – oferece sotaques, costumes e manifestações artísticas das mais diversas, o que o transforma o lugar em um grande caldeirão efervescente de cultura.
Rapidamente podemos lembrar além da diversidade de Cícero, dos magistrais Beija Flor, com sua tessitura narrativa, mostradas em canções com ‘Gameleira‘ e ‘A Bala de Ouro’ (esta gravada com Téo Azevedo), Carlito com seu canto renascentista, revelador e tristonho, mostrando as auguras do rio e do povo, do trio Canto Livre formado por Bha, Delvi e Tino, de Beira Mar, Jackson Antunes, Paulinho Pintor, Zé Mineiro, Gio e Géo, Decão e tantos mais.
Está faltando realizar-se em Janaúba um Fórum Cultural, o que serviria para afirmar o valor da arte independente e espontânea que nasce nas ruas e vielas da cidade, buscando mais ainda o que existe nos guetos do vale. Pode ser uma valiosa ferramenta para o desenvolvimento cultural desta região norte-mineira, incentivando o resgate de identidades culturais. Mas isto é problema para o Arnaldo Pereira resolver pro ano. O nosso...
O nosso é falar da batida agressiva do rock‘n‘roll do Billie Alves, que se mistura ao forró pé-de-serra e a música caipira dos brejos. Para ele, a inspiração é a mesma. Com vários discos independentes – um, de forró, não lançado comercialmente –, sua arte começa a cair no gosto dos formadores de opinião, embora seja um dos maiores vendedores individuais de CDs independentes desse norte-mineiro. Só com seu primeiro CD, ele tirou quatro edições. Menino levado das barrancas do Gorutuba, acostumado com estiagens e enchentes do córrego-rio, colocou debaixo do braço o álbum e caiu no bengo. Vendeu, gastou, fez outros... Divertiu-se o moleque Billie muito mais em cima do palco, do que nós apreciando suas músicas na platéia. Ou o contrário... Sei que todos se divertem.
Cícero Billie Alves é um caso paradigmático, poeta da prosa, e um místico personagem do Vale que vai encantando e espantando a todos com suas formas narrativas. Elas extrapolam a mera classificação de música. Este CD, por exemplo, mistura recursos eletrônicos a uma base instrumental executada com competência, sem jamais perder a melodia de vista. Nele tem experimentação, baladas com belos vocais e rock do bom. Mas o moleque Billie é assim: capaz de ir a um evento em Belo Horizonte ou Almenara, levando na bolsa seu CD independente para distribuir. E assim a vida segue.
Afinado e cheio de estilos, ele interpreta suas canções - como Canção do Sofrê, a mais conhecida, mas nem por isso uma das melhores - atraindo os bons espíritos. E cria um universo no sertão em nossa cabeça, com narrativas e histórias naquela literatura sertaneja. O sertão que Billie - apelido que ganhou por causa de suas interpretações rockianas -, constrói, não se alimenta dos livros que leu, nem de um conhecimento prévio da vida do interior. É ligado às memórias da infância. É ligado ao momento atual. Ele sempre viveu como um morador do campo. Se ela, a inspiração, vem em ritmo mais quente do rock, mais critico do blues ou mais terno, da nossa música sertaneja, não tem problema. Ele vê nossa terra como poeta, da poesia das paisagens e lugares.
Só falta mesmo penetrar na alma de seus personagens.
Mais ainda...

O sertão de Cícero Billie Joe

Escutando novamente o CD do amigo velho Cícero Billie Alves (Volume III – Os Originais não se Desoriginalizam) pode-se comprovar que o velho roqueiro não perdeu a ternura, mesmo rolando por pedras tão estranhas, como estas que se encontram nas areias do Rio Gorutuba.
Afinal de contas, e posso falar de cadeira, o Vale do Gorutuba - que faz parte do Vale do Verde Grande – oferece sotaques, costumes e manifestações artísticas das mais diversas, o que o transforma o lugar em um grande caldeirão efervescente de cultura.
Rapidamente podemos lembrar além da diversidade de Cícero, dos magistrais Beija Flor, com sua tessitura narrativa, mostradas em canções com ‘Gameleira‘ e ‘A Bala de Ouro’ (esta gravada com Téo Azevedo), Carlito com seu canto renascentista, revelador e tristonho, mostrando as auguras do rio e do povo, do trio Canto Livre formado por Bha, Delvi e Tino, de Beira Mar, Jackson Antunes, Paulinho Pintor, Zé Mineiro, Gio e Géo, Decão e tantos mais.
Está faltando realizar-se em Janaúba um Fórum Cultural, o que serviria para afirmar o valor da arte independente e espontânea que nasce nas ruas e vielas da cidade, buscando mais ainda o que existe nos guetos do vale. Pode ser uma valiosa ferramenta para o desenvolvimento cultural desta região norte-mineira, incentivando o resgate de identidades culturais. Mas isto é problema para o Arnaldo Pereira resolver pro ano. O nosso...
O nosso é falar da batida agressiva do rock‘n‘roll do Billie Alves, que se mistura ao forró pé-de-serra e a música caipira dos brejos. Para ele, a inspiração é a mesma. Com vários discos independentes – um, de forró, não lançado comercialmente –, sua arte começa a cair no gosto dos formadores de opinião, embora seja um dos maiores vendedores individuais de CDs independentes desse norte-mineiro. Só com seu primeiro CD, ele tirou quatro edições. Menino levado das barrancas do Gorutuba, acostumado com estiagens e enchentes do córrego-rio, colocou debaixo do braço o álbum e caiu no bengo. Vendeu, gastou, fez outros... Divertiu-se o moleque Billie muito mais em cima do palco, do que nós apreciando suas músicas na platéia. Ou o contrário... Sei que todos se divertem.
Cícero Billie Alves é um caso paradigmático, poeta da prosa, e um místico personagem do Vale que vai encantando e espantando a todos com suas formas narrativas. Elas extrapolam a mera classificação de música. Este CD, por exemplo, mistura recursos eletrônicos a uma base instrumental executada com competência, sem jamais perder a melodia de vista. Nele tem experimentação, baladas com belos vocais e rock do bom. Mas o moleque Billie é assim: capaz de ir a um evento em Belo Horizonte ou Almenara, levando na bolsa seu CD independente para distribuir. E assim a vida segue.
Afinado e cheio de estilos, ele interpreta suas canções - como Canção do Sofrê, a mais conhecida, mas nem por isso uma das melhores - atraindo os bons espíritos. E cria um universo no sertão em nossa cabeça, com narrativas e histórias naquela literatura sertaneja. O sertão que Billie - apelido que ganhou por causa de suas interpretações rockianas -, constrói, não se alimenta dos livros que leu, nem de um conhecimento prévio da vida do interior. É ligado às memórias da infância. É ligado ao momento atual. Ele sempre viveu como um morador do campo. Se ela, a inspiração, vem em ritmo mais quente do rock, mais critico do blues ou mais terno, da nossa música sertaneja, não tem problema. Ele vê nossa terra como poeta, da poesia das paisagens e lugares.
Só falta mesmo penetrar na alma de seus personagens.
Mais ainda...

A cabeça pensante da nossa MPNM

Existe em algumas pessoas um jeito de ser, que espanta aos menos avisados. Ildeu de Jesus Lopes, Braúna, é um desses tipos. Um compositor sóbrio. Em todos os aspectos desta sobridez. Seu trabalho não vem de agora e não deve terminar nunca. Vem d‘outros mares, talvez já navegados. Mas sem o forte sabor catrumano que ele dá a eles.
Conheço Braúna, nome que escolheu, de berço, desde antes de dividir seus cantos. E ele continua fazendo o mesmo escriba, seja em parcerias distanciadas ou não. Um compositor, escritor e poeta que atinge a perfeição em músicas como Rasante (voa rasante sobre a cidade...), Bandeira Boiadeira (Meu patrão carrega o ouro, eu carrego a bandeira...) ou a recente Rosa Amarela (só eu conheço no vento o cheiro do meu amor...).
Seu método submete-se ao prazer da inspiração. Isso porém não impede uma regra básica, utilizada para mostrar seu sertão como uma rival da mulher amada.
Seu escrito tem algo de invisível aos olhos num primeiro momento, mas que vai bater nos corações e mentes. Tem um quê de pesquisa, onde chapadas, cerrados, sertões e veredas se confundem.
É como o canto do galo, os corações tatuados em árvores, que a gente teima em edificar nos edifícios da cidade. Ele é assim, se envereda pelos trilhos costumeiros de um tempo que pode nascer quando um colibri se apaixona por uma gota de orvalho, ou o caboclo d’água, em banzo, fica brincando serelepe na beira do rio.
Embora esteja gravado nas grandes vozes da MPB, como Sérgio Reis, Téo Azevedo, Saulo Laranjeira, Renato Teixeira, Pena Branca e Xavantinho, para citar apenas uns, não cultiva o mito. Assim como veio, o sucesso vai, de empréstimo, como costuma pregar aos menos avisados, ou aos que se acham escolhidos para a fama. Afinal, o panorama da música popular brasileira é muito instável. E da nossa música popular norte-mineira, mais instável ainda.
Braúna escreve para um povo morador da mata do sem fim, bem no coração das cidades. É como aquele pontinho do mapa, casa com pé de goiaba branca.
Na verdade, é um dos raros compositores pensantes deste nosso sertão. Pensante, sobretudo, pela própria cabeça e intuição musical forjada na percepção da Vila Brasília de seu coração. Cada novo trabalho seu significa um compromisso com o repertório quase tão profundo quanto a própria ligação autoral.
Seja na música, seja no poema, nas histórias e na prosa, ou mesmo no papo levado até a tarde, debaixo de qualquer pé de jabuticaba, este caipira da cidade busca encontrar o catrumano dentro de si.
Nós nunca vamos conhecer o rumo de sua galáxia, mas ele, às vezes, deixa uma dica, no final da conversa malevolente: parece que é perto de Delta, no Cruzeiro do Sul. É lá que ele escreve coisas leves. E tão bonitas.
Não ficará conhecido como o superstar do sertão. Mas sim, a cabeça pensante, depois de João Guimarães, que reinventou a escrita da nossa terra. Ou melhor, a roda!

Os botequins destes nortes do Norte

‘Montes Bares Claros’, o poema de Tico Lopes musicado por Wanderdaick, ronda minha a cabeça quando lembro dos botequins por onde passei nestes nortes de Minas. São nortes, sim, são vários. Há o norte de Janaúba, o norte de Salinas, o norte de Januária, o norte de Pirapora, e por aí vai. Afora.
Nossos botecos, bareszinhos, botequins, muitas das vezes são mal-vistos por retrógrados, combatidos por moralistas e atacados por frustrados. Mas é neles que, na verdade, se discutem assuntos realmente sérios. Como futebol, música e mulher. Neles, ainda, importantes decisões políticas são tomadas. Mirem-se no exemplo do ‘Quintal’, do Valtinho, onde todas as tardes havia reunião com nosso prefeito Mário Ribeiro, Marão, e (quase) todo secretariado. Além de vereadores, amigos e serrotes.
Também são nestes botequins que obras-primas são concebidas. Ray Colares criou maravilhas ao passar pelo Sibéria. Beto nos bareszinhos da Ruy Barbosa, Tino, naqueles da Vila Guilhermina, como o antigo ‘Bar do Mô’. E são neles, ainda, que casos de amor iniciam, mágoas são afogadas e sonhos, embalados.
Passei várias noites nestes nortes, em cidades que marcaram minha vida. Todas, é bom frisar, marcam. Seja por um motivo qualquer, uma história, uma dor, uma viola ou um canto de bossa nova, embalado pelo Fausto, tocador nato que, depois de pirar o cabeção na Bovespa, voltou para Janaúba, onde é professor... E toca solando esplendidamente. Pois, nestas cidades, após o expediente ou as reportagens normais, ficava a perambular, tentando encontrar o sentido delas, coisas novas e divisíveis com os outros nortes do nosso norte.
Foi andando por estes cantos que fiz uma relação, hoje talvez ultrapassada, como a música do Tico e Daick, daqueles botequins que chamavam atenção. Marcaram um tempo, indivisível. Encontrei os nomes agora mesmo, numa agenda antiga, destas que a gente vai marcando dias e, nelas, os anos vão ficando. Para sentir que estamos envelhecendo. A maldição suprema seria envelhecer? Sem perder a ternura? Sei lá!
A vida parece uma charada absurda e incrivelmente nova, pronta a ser decifrada à força do suor e eletricidade. Quem ainda não pensou numa saída de emergência? Conhecer o sabor da glória, provar todas as delícias, mudar a face da terra, ou mesmo andar pela estrada e criar uma lenda. Nossos botequins nos dão isso. Tudo. E mais.
Ta certo, meu caro, que já mostrava o poetinha ser a vida diferente. Na vida real, quando muito, há um assassino triste e doente. Na vida real, todo mundo mexe em time que está ganhando. E por que haveria de ser diferente?
Até para estes nosso botequins, bareszins, restaurantins, o tempo passa...
Onde estão a Varanda, Roda Viva, Maria Clara, Rafa’s, La Pizzarela, Redondo, Chica, Seis a Seis, Quintal, Toco, Kaminho de Casa, Muralha’s, Young, Mangueirinha, Espeto de Ouro, Intermezzo? Isto, para citar alguns, de Montes Claros.
E neste norte de Meu Deus?
Em Januária, acredito que continua, naquele bequinho, perto do antigo cinema, o ‘Babalú’, onde a pinga e o licor são de graça. É só servir. Comida a quilo, mas se você chegar com jeitinho, fazem, sob encomenda, um surubi ou dourado assados. Arroz com pequi na terra da Princesa Januária, você encontra seja janeiro, junho ou outubro. À noite, servem uma sopa, de graça, para os frequentadores mais assíduos. Ou apadrinhados. Tem ainda angu com quiabo, cuscuz, pamonha, picado de arroz dourado assado e coisa do puba, uma mandioca enterrada posta na água para fermentar, que usam, para fazer bolos. Pedrinho Gonçalves usa para atrair peixes.
A ‘Pizzaria Vennuttus’, em Várzea da Palma, não vende pizzas. Na verdade, é uma churrascaria. No ‘Donizeti’ se encontra o melhor bife acebolado daquele norte. E tem um procedimento simples, mas raramente adotado: os copos são resfriados e trocados a cada cerveja servida.
Na Praça do Coreto, em Pirapora, tinha o ‘Ducinema’, com batidas de pinga a perder de vista. Lembrava o antigo Chopão da rua Lafetá, em Montes Claros. Embora tenha perdido espaço para a caipirinha nos bares da moda, as batidas de frutas ainda são encontradas em botequins mais antigos. Zé Amorim fazia uma, de limão, no Espeto de Ouro, que deixa lembranças ainda hoje.
Na Avenida Salmeron, em Pirapora, tem o ‘Kaka’s’, nas Duchas, ‘Pôr Do Sol’ com língua recheada da melhor qualidade. O mexidão do ‘Sabor Mineiro’, no Santo Antônio, a comida caseira do ‘Bife no Pé’, na saída para Montes Claros, e o peixe assado na brasa, servido no espeto, do ‘Egnaldo’, pra ninguém botar defeito. Pirapora está bem servida ainda hoje.
Na praça Imaculada Conceição, em Buritizeiro, o ‘Tuka’s Bar’ serve um caldo de feijão de lamber os beiços. Dentro, você encontra deumtudo, mas não pergunte o que é.
‘Pé na Cova’ é daqueles endereços tão folclóricos que ninguém sabe a data de inauguração. Fica subindo para um dos nortes, em Francisco Sá. Está ao lado da entrada principal do cemitério da cidade, e é especialista em churrasco de frango. Tem gente que senta de costas para o cemitério. Para não ofender aos mortos. Outros sentas de frente, para beber aos mortos. Muito da fama do ‘Pé na Cova’ aconteceu por causa da localização estratégica e da boa vontade da então secretária de Cultura, Ana Valda Vasconcelos, em levar todo mundo pra lá. A frequência não dá a menor bola para a enorme simplicidade da instalação. Estão preocupados mesmo é com a qualidade do, digamos, substancial churrasco de frango.
Sempre sossegado, o ‘Bar do Zezão’, em São Francisco, é definitivamente um boteco familiar. Os mais chegados chamam o lugar simplesmente do ‘Cudipadre’. Fica na praça Januária, no fundo da igreja Matriz. Naquela casa velha, de balcão de madeira, antigo, para cada dia da semana tem um prato diferente: mandioca com manteiga vem com fartura, almôndegas, peixe, ‘feijuca’ as sextas à noite. E pinga boa. O detalhe: abre às 18, fecha às 22.
Já o ‘Peixe Vivo’, vive da fama. Passei lá com o Mércio Coelho e Ildeu Braúna, mais para apreciar a vista, pois o local é bonito e agradável. O atendimento é que não são lá estas coisas. Pode ser que a gente tava de bermuda. Sei lá! São Francisco ainda nos deu o ‘Bar do Antônio Doido’ e o ‘Marron Glacê’, ao lado do cemitério. A aguardente é gratuita, e peixe, frito, no quilo, gostosinho.
O ‘Boteco do Tim’, em Brasília de Minas, é o barzinho dos intelectuais da cidade. Se Vinícius de Morais tivesse conhecido este bar, a Garota não seria de Ipanema. Se Egídio Medeiros deixasse. Já o ‘Bar do Jacu’ é o ponto de encontro dos políticos, com sua cachacinha generosa, frango caipira e dobradinha, servidos pelo João Jacu. Tem ainda os botecos do ‘Jucão’, no Alto Claro, do ‘Tião Mansinho’, cujo feijão tropeiro não tem ovo nem torresmo, e do ‘Wilsão’, que é asseado, barato, mas insosso.
No norte do Grão-Mogol, o bom é conhecer um garimpeiro, PM reformado, que tem boas histórias pra contar. E é dono do Rampa’s, um botequim que, se beber muito, descer é fácil.
Na histórica São Romão, de Vó Angélica, o Velho Chico, de Francisco Bezerra, não vende peixe. Só churrasco. Já o boteco do Elielson fica em cima do rio. Tem peixe do bom, fartura de cerveja gelada, papo supimpa e bolinho de aipim. O bar virou ponto obrigatório de passagem de músicos que se apresentam na cidade. Fatel gostou tanto que virou uma espécie de madrinha do lugar. Certa vez, a cantora chegou às 3 da tarde e ficou até fechar.
O ‘Bar da Lú’, de Salinas, tem o nome parecido com o de Januária. A Havana é legítima, assim como a dona, Lú, que vai para o fogão, bate papo com o cliente, senta-se à mesa e, se der, ainda paga a saideira. O salão comprido, cheio de estilo, tem muita história para contar. Foi passagem de muita gente importante. Fica na praça principal, ponto de encontro da gente do lugar. A Câmara e a Prefeitura funcionam ali ao lado, e fornece os políticos. Músicos vinham de todos os lugares, e Juízes de Direito, advogados, empresários completavam o cenário. Além da pinga legítima de Salinas, autêntica (tem boteco lá que não vende a legítima), tem o rabo de galo (cachaça e Cinzano) mais gostoso que tomei.
A superioridade dos nossos botequins é inquestionável. E olha que falei de alguns, destes nossos nortes do Norte. Nem passei perto de Montes Claros ou Janaúba. São testemunhas da história de cada cidade. De cada norte. Estes lugares guardam a alma dos seus frequentadores em cada mesa, em cada fotografia ou calendário pendurado na parede, nos nomes dos petiços e, acima de tudo, na memória dos seus proprietários. E de nós mesmos.