domingo, 20 de novembro de 2011

Viver e reviver

Não podemos segurar o mundo. Ele roda, quiçá, muito mais rápido que queremos. E mais lento do que precisamos. As sensações são como brisas, que vem lavar a alma e se vão. Fica o perfume. Que não fique o remorso do que não foi feito, e sim o prazer de viver plenamente.
Isto me leva ao Bar do João, quatro portas grandes, a esquerda da Dr. Santos, um pouco acima da casa onde era o Hospital Prontocor – antes uma pensão que recebia o povo de Taiobeiras. Ficava no quarteirão entre dois Dons: Pedro II e João Alves Pimenta, ao lado da Pensão Mato Verde. Ali tomei porres comendo dobradinha, tomando Brahma e cachaça com amigos e amantes. Ali foi o montesclarino John Sebastian bar... Tinha um balcão grande na frente e uma entradinha para o reservado. E João com a música dos Beatles tocando sem parar. Tanto que chamávamos o local de Beatles Bar.
Ali, um dia, meu anjo descabelado caiu em cima de mim. Caiu por engano – ou quem sabe, não? Um anjo torto, desses que vivem na sombra. Caiu e bebeu uma cacha-cola, mistura de uma cachaça desdobrada com coca-cola que era servida, já que não havia dinheiro para lhe pagar uma Cuba Libre.
No Bar do João acontecia destas coisas. Até anjo caia em cima da gente, quanto mais pessoas. Talvez faltasse o pó de pirlimpimpim...
Hoje, olhando meus cadernos de viagem, é que percebo que as portas e janelas daquela paisagem tem alguma coisa daquele anjo torto, descabelado. Não há nada abandonado num passado que se fez com todo o possível sentimento. Volta e meia tudo volta, e vemos que a história não morreu. Estava só guardada lá dentro da gente.
A época do Bar de João bateu com o tempo em que eu fazia Tiro de Guerra, quase 40 anos atrás, em que os sargentos Bhaumer, Telles e Camargo tentava ensinar o que é bom e o que é mau, sem nunca dizerem de que lado estavam: do bom ou do mau...
O Bar do João viveu mais que aquele ano de 1972. Naqueles anos em que frequentamos o lugar – eu, Felipe Gabrich, Yuri Poppof, Sebastião Soares, Washington Luiz Neném, Ricardo Xarope, Manoel Oliveira, Hudo Fidelcino, Eduardo Brasil, Ceumar, Daguinha, Kyriê, Léo, Glória, Setemeses, Nôra, Juventino Dário, entre tantos – comentamos sobre o ‘Ultimo Tango em Paris’ e as belezas do corpo de Maria Schneider; falamos e cantamos músicas de ‘Cabaret’, fazendo coro a Liza Minnelli e ainda discutimos com ar de intelectuais o porquê de Darlene Glória em ‘Toda Nudez Será Castigada’. Foi nas mesas do Bar do João que torcemos pela rebeldia de Patty Hearts e saboreamos ‘Garganta Profunda’, sem nunca assistir ao filme.
Naquele boteco de quatro portas altas, madeira, em plena Rua Dr. Santos, escutamos, à noite, o rock e soul de Big Boy pela Mundial. ‘Vapor Barato’ a ‘Maracatu Atômico’, passando por ‘Pérola Negra’, ‘Ouro de Tolo’ e ‘Sangue Latino’. Tudo teve parada obrigatória ali. Além dos Beatles, que nunca deixaram de tocar.
Até a guerrilha do Araguaia foi discutido entre uma e outra cachaça. E a guerrilha que iríamos fazer, e nunca fizemos.
Vinho, underberg, baseado! Tudo entrava – e saia!
Inclusive Rosinha (pra não dizer seu nome verdadeiro), a rainha das 1001 noites mal dormidas, que fazia em nós, frequentadores, um aperfeiçoamento do Kama Sutra, para evitarmos naufrágios de alcova. De graça, e no banheiro unissex. Foi ali que muitos de nós conhecemos as posições mais prazerosas e aprendemos passo a passo como executá-las durante a transa, garantindo um gozo mais forte.
O Bar do João veio na hora certa!
Hoje, sinto como se tivesse passado quase 40 anos vendo aquele filme. João que se foi tão cedo para o andar de cima: you are there!
João que curtiu o tempo e o vento, principalmente um tempo em que a palavra liberdade era dita no escurinho do cinema – ou do seu boteco–, mas que vivíamos bem no seu barzinho tosco da Dr. Santos.
Na verdade, o início dos anos 70 foi um tempo em que meu anjo descabelado caiu em cima de mim, numa noite de verão. Um anjo louro, época em que ‘DOI’ era código e Biotônico Fontoura deixava muita gente doidona.
E hoje, relendo meus cadernos de viagem, meu anjo volta e reconhece pessoas que me viram de passagem e também puderam ver quem estava ali.
E se um dia desses eu encontrar por aí com quem estava ali, naquele tempo, meu anjo vai dizer que somos da mesma semente.
Somos nada mais do que gente.
Eu não devia te dizer, mas essa lua, esse conhaque, botam a gente comovido como o diabo.
Que o diga Drummond...