domingo, 20 de maio de 2012

Tristes santos de nossa constelação

Não sou branco ao extremo, sou pardo, resquícios de minha avó Teodomira da Silva. Ou do avô João Alves, que nada tinha a ver com dona Tiburtina, onde a morte e o tiroteio andavam por perto. É certo que esta parte de minha vida ficou um pouco embaçada no espelho da história. Não tenho nem mesmo um olhar dos meus avós maternos, pousando para uma foto souvenir. Apenas os fantasmas caipiras deles, que fingem se assustar com o dono dessa casa quando entra no escritório, assim, de supetão. Assustados, eles fogem como entraram. Saem voando, pela copa das árvores. Deles, porem, através de minha mãe Maria, veio ensinamentos de gente grande. Um deles foi passado por um revolucionário que, fugindo-se sabe lá de que – talvez de Fulgêncio Gomes de Almeida, o oficial de justiça que ia prender Antônio Dó -, passou por Bela Vista muitos, mas muitos anos atrás. Ela o guardou, repassou pra minha mãe que me repassou e eu aos meus filhos. Uma idéia simples, “Amai-vos uns aos outros”. Uma revolucionária idéia, não colocada em prática até hoje. De minhas avós – e tive muitas, mais do que avôs – guardo lembranças múltiplas. Quando penso no carqueja, no sabugueiro e no chá de açafrão, me lembro ainda mais, com saudade ensombrada de Vó Mariinha. Ela, na penumbra da cozinha, naquela casinhazinha tão pequenininha da Pedro Montes Claros. Ela, Belinha, Geralda, Ducarmo, Zé Maria. Das mangas, do pé de mulungu, do araçá, da pinha e das jabuticabas, que dão até hoje, como as mangas, tantas. Embora cismem de cortar estes pés. Quando vejo o xerox amarelado com a caricatura de Tiburtina n’O Malho, me vem nitidamente o sobrado da Rua Curitiba, 1.800, no bairro de Lourdes, em Belo Horizonte. Vem-me a saudade de Vó Lainha, sentada, triste, olhando aquelas flores amarelas que lhe rodeavam e lhe davam aquela coroa de ouro e um quê enigmático ao rosto. Aparece-me nitidamente Tia Quininha, Fred, Tomás, a garagem que servia de quarto para quando eu e meu pai nos hospedávamos lá. E me vem à lembrança de Iraci, de Geraldo e tia Edi, Márcio Hiram, Tereza e Beth. E fica aquele vazio da imagem que dói no meu tio Eudipson... O Natal de 1962 me leva a Belo Horizonte. Deixa-me na Santa Casa, a Praça Hugo Werneck, e vislumbro um quarto onde vi Vó Angélica pela última vez. Ela estava magra, mas o sorriso para o neto era o de mais pura felicidade. Naquele Natal, o último que passamos juntos (ela faleceu dia 09 de janeiro de 1963), meu aniversário foi comemorado na capital. Não me lembro de nenhum presente especial, mas de muito bombom Sonho de Valsa, no apartamento em que Tia Oraide morava com minha avó e Conceição, no edifício Marrocos, a Rua da Bahia. O que me impressionava ali era um fogão que funcionava a energia elétrica, e um macarrão assado que Conceição fazia especialmente para mim. Vale dizer que queimei o dedo diversas vezes, pensando que o fogão estava desligado... O Restaurante Espeto de Ouro me leva até minha avó Lica Vasconcelos. E me dá doces lembranças de Dona Carlota Quadros, minha primeira professora, a quem há anos considero minha Vó do ensinamento. Dona Carlota alta, vistosa, nos ensinando o bê-á-bá no Colégio São José, onde fiquei por 11 anos. Dela tive não tios, mas amigos que, enquanto estiveram aqui, eram inseparáveis: Tadeu (Juquinha) e Dirceu. Dirceu partiu cedo, quando namorava minha prima, Beth, deixando-a triste e chorosa durante vários dias. Juquinha ficou com a gente mais tempo, alegrou nossa vida, nos trouxe canções que são obras primas, como Estradas e Violas: A gente só não é nada quando os pés não estão no chão. Ficar parado esmorece, mas andando acontece. É bom deixar rastros no chão! Ainda vamos reunir todas suas canções em um disco só dele, tenho fé. Quando passo pela Casimiro de Abreu, e vejo aquele pé de goiaba vermelha saindo por cima do muro, sei onde estou: é a casa de Vó Angelina, mais uma das minhas avós. Foi dali que saiu Edvaldo Pinheiro, a quem não sei se trato como filho mais velho ou irmão mais novo. Vó Angelina, a quem peço a bênção e a reza do final de tarde para mim e meus filhos. Foi casada com um homem extraordinário, Escolástico, que gostava da vida e de um papo bom de final de tarde. Quantas vezes não jogamos conversa fora, mas guardamos estas conversas para nós, causos e casos do Matadouro Otani, onde começou a trabalhar com seus 15 anos para sair de lá aposentado. “Sêo” Escolástico partiu para nova jornada em 2001, mas me deixou Diva para olhar. E Vó Angelina, que trabalhou anos e anos com mina outra avó, Lica Vasconcelos, na Afonso Pena, em frente ao posto que vendia querosene e se transformou no Bar Rigudo. E com ela histórias do café Columbia, do Ciço, que era chamado de Cícero; do rei do Sandwiche, Bar Sibéria, Café do Zinho Bolão e Leiteria Celeste, de Zé Priquitim. Todas ali, naquele centro gostoso da cidade. Que, como era doce, se acabou! Vó Angelina me disse certo dia, que houve uma época em que as pessoas viviam mais perto do céu. Isso passou... Até parece que se acabou! Para compensar os dois avôs que tive, mas não conheci, ganhei este mundo de avós. Deus compensa. Vô João Alves da Silva me aparece ainda hoje como fantasma, vez por outra. Quando sinto sua presença – ou de outros desencarnados –, saem rapidim, de esguelha, soslaio. Não ficam para conversas. Não sei se fui eu quem não desenvolvi meu lado mediúnico, ou se eles têm medo de mim. Ou ambos. Ou se eles se manifestam de outro jeito. De vô João Novaes Avelins, o Novaes Velho, ficaram muitas histórias. Inclusive dos jagunços de Tiburtina, depois da Revolução de 1930. Mas Tiburtina morreu louca, com a camisa do marido e seu estoque de morfina. Partiu rumo à solidão total. Novaes Velho partiu antes, feliz, pois a vida vai, mas vem vindo. Eu continuo aqui. Fazendo gestos de silêncio para no acalanto, meu corpo poder dormir inteiro. Não brigo com ninguém, apenas carrego comigo as réstias de minha vida, este feixe de luz que me conduz. As pedras do caminho como ensinou Dylan, devemos deixar para trás. Como os mortos, que não se levantam mais. Mas as lembranças, devemos deixar no peito. Não trancadas. Abertas. Pois elas nos ensinam o futuro.

Um olhar pelo retrovisor da memória

Ligam-me para dizer que estou muito saudosista. Que devo estar muito triste. Pode ser porque roubaram o meu Buda – que havia roubado do Rays –, e há muito não vejo meu trevo de quatro folhas. Nada disso! É que, às vezes, quero apenas registrar um tempo. Um tempo em que o Brasil era Montes Claros. Um tempo em que só através de escritores como João Rosa, Érico Veríssimo, Jorge Amado, Henry Miller ou Adelaide Carraro, conhecíamos o Brasil de fato. Ou um outro mundo, como o de Miller. Li a trilogia "Sexus”, “Plexus”, “Nexus", naqueles anos de chumbo, e descobri que tudo o que a gente ainda não pensava ou tinha apenas visto nos catecismos do Zéfiro, poderia ser feito. Adelaide Carraro era outra danadinha ao escrever. “Eu e o Governador” mostrou que a sacanagem era honesta e a corrupção, como dizia Brecht, obedecia a certas regras. Saudades dos textos e contextos da Adelaide. Tenho que voltar a lê-la. Montes Claros se transformou no centro do universo (ou no cu do mundo), pois tudo estava tão longe, que nem olhar dava. Falar pelo telefone, tinha que esperar a telefonista e algumas horas até completar a ligação. Hoje é tão fávil!. E por aqui tinha o Tiãozinho Comunista com suas idéias e termos, Eduardo Brasil trazendo o mundo através do teatro, Bob (Roberto Luiz) e seus chás muito loucos, bicho. Tinha Rubim, Goiabão, Si Baixinho, Júnior. E Daga, irmã do Brasil. Daga tinha um look diferente. Era meio existencialista, meio francesa, meio Clarice Lispector. Seu olhar quebrava tabus. Lembro de um flerte com ela, no “Espeto de Ouro”, depois de umas batidas de limão inventadas pelo Sinval Amorim. Estava eu e o Ricardo Xarope numa mesa, ela e outra garota, que não me lembro mais quem, no outro extremo do restaurante. Era de madrugada, madrugava, Jaime Cruz e João Lefú trabalhavam, chateados, pelo pouco movimento. Não deu em nada, ficou no flerte comum, como eram comuns estes flertes de antigamente. Nada de ficar, como hoje. Mas nos conhecemos mais através dele. Uma outra vez, a gente já sabia quem era quem, e tinha tomado Optalidon na Praça Coronel Ribeiro. Fomos pra “Mineira”, e ficamos esperando para pedir um Baião de Dois, que nunca era pedido. A cerveja esquentava no copo, e a conversa fluia sobre mil coisas. Doiduras das noites montesclarinas. Falamos sobre Clarice Lispector, sobre o entender. Anos depois, li o entender da escritora. "Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo." Eu era um pálido e magro romântico, tentando passar por um incendiário revolucionário. Não dava certo. Mas existia aquela menina, que morava no inicio do bairro Todos os Santos. Sempre a via de longe. Sorria para ela, ela correspondia. Ela era de estranha e misteriosa beleza. Apareceu-me assim, meio de surpresa, um dia, no “Espeto de Ouro”. Saímos em seu carro, coisa diferente para aqueles dias. Chegou a ir a missa jovem no asilo. Sempre ia me buscar. Passeávamos pela cidade, bebíamos em botecos, comíamos. Abraçávamos e beijávamos. Na verdade, quase namoramos. Depois, ela foi embora. Assim, de repente, como apareceu. Coisas de Montes Claros. Montes Claros era o que era. Transformou-se e ainda se transforma, perde o vínculo com o passado. Na baixada do rio dos Vieira, descendo a Rua Reginaldo Ribeiro e passando ao lado do campo de futebol do seminário, tinha uma dona que recebia a todos em sua casa. Era perto do rio, tinha ainda muito mato por ali. E um pequeno pomar, que era dos padres. Quem nos apresentou a ela (ou melhor, nos levou à raparigagem) foi o Marquinhos, que jogava um futebol de primeira, tinha uma banca de revistas no Alto São João, perto da casa do João Jorge, e resolveu subir mais cedo. A gente ia ali pra conhecer as coisas. Às vezes, a turma formava fila na porta do quarto, todos agitados (ou se agitando) e com a adrenalina lá em cima. Muitos colegas da turma da Praça do Rosário se iniciaram ali, sexualmente. Laia, Ladaia, Sabatana, Ave Maria! O “Chopão”, do Biondi, era um lugar esquisito e agradável. Com aquele montueiro de batidas, era o local em que as garotas de programa iam se divertir após o trabalho. Chegavam lá com amigos e namorados, e não estavam nem aí pra nada. Um dos meus maiores porres aconteceu neste bar, no final de 1972, quando terminamos o Tiro de Guerra. Inventamos de beber todas as batidas dali. No final, ficou eu e o Vasconcelos. No outro dia, acordei procurando a cabeça, que parecia estar no teto. Vasconcelos sumiu por aí, como Tino, Brasil, Itamauri, Manoelzinho Oliveira, Marcelo, Pancho, Telles, Narciso. Agora mesmo, recebo e-mail do Narciso, preocupado, como sempre, com o nosso norte. Na turma da rua Dr. Veloso, na casa do Seu Romeu, tinha João que era exuberantemente gay, numa época que o preconceito era bem maior. Hoje, existe, mas é aceito. Naqueles anos, a coisa era feia, e ele gostava de exibir roupas lindamente confeccionadas, que assustavam a todos. Tinha (e tem) uma simpatia irradiante no rosto e nos gestos. Doidão e amoroso, adorava Woodstock, que assistiu ene vezes, insistindo para que eu assistisse mais e mais. E até hoje eu assisto, em casa. João se esbaldava ao dançar, principalmente ao som de “Ando Meio Desligado” dos Mutantes. Vivia (e vive) sempre num paraíso astral, e a conversa com ele vai desde a revolução de 30 e a tocaia dos Botocudos, passa por Matias Cardoso e as Geraes e chega a música, divina música. É como dar um olhar pelo retrovisor da memória, pela simples curiosidade de ver onde o sol (e o tempo) se esconde. Tem tempo que não nos encontramos, mas a amizade entre nós continua. Ele, como Gil, nos orienta pela constelação do Cruzeiro do Sul. Pela constatação de que a aranha vive do que tece. E pela simples razão de que tudo merece consideração. Ave, Joba!

Com Ricardo Xarope, no país dos baurets

Não curto o roqueiro radical. São radicais e preconceituosos, tanto quanto os radicais da MPB. Também não curto o torcedor radical. Mas às vezes, me acredito radical. Deve ser por isso que sou ainda hoje um apaixonei pelo “Os Mutantes”. Paixão que fica guardada no peito, e quando escuto uma daquelas canções, mexe com minha cabeça, e me faz até mexer com o corpo. Naturalmente, sem dançar. Para não dançar, como ela nos ensinou anos atrás. Tenho este amor por eles desde o final dos anos 1960. Tem tempo, cara! “Pisa o silêncio, Caminhante noturno, Foge do amor, Que a noite lhe deu sem cobrar, Sem falar, Sem sonhar”. Quando os vi, me apaixonei novamente. Principalmente pela vocalista. Aquela mulher com cara de menina com jeito americano de ser, magrelinha como música de Luiz Melodia. Aquele corpo andrógino. Paixão a primeira vista. Comigo, não haveria pecado do lado de baixo do equador. Eu namorei com ela, embora até hoje ela não saiba. Se soubesse, terminaria tudo. Já havia seu romance com Arnaldo... E seu futuro estava traçado: seria a primeira rockstar brasileira, hoje nossa vovó do rock. Mas, qual o quê! Diz a história que “Os Mutantes” - Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias - eram influenciados por grupos de twist brasileiros, como The Jet Blacks. Sei não! Sei não! A influência, para mim, vinha mais de cima. Sei que, ao apresentar o grupo para Ricardo Xarope, meu parceiro de músicas, mulheres, ilusões e desilusões àquela época, ele o influenciou a tal ponto que pelas madrugadas e serenadas da vida, tínhamos que tocar 2001 ou Caminhante Noturno. Fuga número II aparecia vez por outra, mas muito difícil. A influência foi tanta, que Ricardo a levou para os céus e, vez por outra, me aparece em sonhos, cantando “Banho de Lua”, com aquele jeito que só “Os Mutantes” cantam. Além de “2001”, de Rita Lee e Tom Zé {Astronauta libertado/ Minha vida me ultrapassa/ Em qualquer rota que eu faça; Dei um grito no escuro/ Sou parceiro do futuro/ Na reluzente galáxia}. São ótimos estes sonhos. Caímos na farra. Às vezes até o Hudo Fidelcino aparece. Mas só raramente... Vamos um pouco voltar à estória. E diz a história que os irmãos Arnaldo e Sérgio formaram o grupo Wooden Faces com alguns amigos de colégio, no início dos anos 60. O grupo tornou-se um sexteto ao ser acrescido das Teenagers Singers, outro grupo paulista, cuja vocalista era Rita Lee, a quem namorei sem saber que eu namorava com ela. Tiveram outros nomes: Six Sided Rockers, “O Conjunto”, “O’Seis”. Foi quando a banda gravou um compacto, raríssimo. Que não consegui até hoje. Foi só com o fim do “O’Seis” que Arnaldo, Rita e Sérgio formaram “Os Mutantes”. E isto, para acompanhar o cantor Ronnie Von em seu programa O Pequeno Mundo de Ronnie Von. Imagine! Eles ainda participaram do compacto “Bom Dia”, de Nana Caymmi - através de quem conheceram Gilberto Gil. O ex-ministro viu no trio paulista o complemento que procurava para inscrever sua canção “Domingo no Parque” no Festival da TV Record. Era o ano de 1967. Estava completa a trama. Está tudo lá no filme “Uma Noite de 67”. Em 1968, gravaram o clássico LP “Tropicália ou Panis et Circensis” na companhia de Gil, Caetano, Gal, Tom Zé e Nara Leão. Até aí, tudo normal na casa de Noca, que nunca é normal. O bom vem a partir desse momento, quando o primeiro disco Lp foi lançado. Era 1968, ano de boas e más lembranças. Chama-se “Os Mutantes”, foi influenciado pela psicodelia festiva dos Beatles e pelos gurus da tropicália. Nele, estavam Panis et circensis, A minha menina, O relógio (a primeira canção reunindo Sérgio Dias, Arnaldo Baptista e Rita Lee em letra e música), Maria Fulô, a linda Baby, Bat Macumba. Passou. Era uma amostra do que viria. Eu quase posso palpar/ A minha vida que grita/ Emprenha e se reproduz/ Na velocidade da luz/ A cor de céu me compõe/ O mar azul me dissolve/ A equação me propõe/ Computador me resolve... O segundo LP, homônimo, revelava maior independência criativa, com criações próprias de sucesso, como “Dom Quixote”, “2001” ou “Caminhante Noturno”. “Algo Mais” era uma propaganda da Shell. “Fuga número II” era d-e-m-a-i-s, como diria João Jorge anos depois. “Banho de lua” (Tintarella di luna), com aquela guitarrinha ao fundo... E “Rita Lee”, a primeira canção feita com nome próprio para um compositor vivo. Além de “Qualquer bobagem”, com Tom Zé se unindo a Rita novamente. Entre a explosão da Jovem Guarda nos anos 60 e o Rock BR dos 80, eles fizeram a aclimatação do rock nos trópicos. Com a virada de década, o trio foi acrescido do baterista Dinho e do baixista Liminha. Mas, ao mesmo tempo em que ganhava em coesão instrumental, caminhava para uma sonoridade menos debochada, mais próxima do rock progressivo. Antes de sucumbirem, ainda lançam três LPs que mexem com as estruturas. Tendo a frente Rita e Arnaldo - Sérgio já viajava pelo som do progressivo... O primeiro, “A Divina Comédia ou... Ando Meio Desligado”. Nele, Arnaldo Batista e Rita Lee influenciavam em tudo: “Ando meio desligado”, “Desculpe, baby”, a ótima e debochada “Meu refrigerador não funciona”, “Hey boy”, e a gravação que fez Orestes Barbosa tremer no caixão, “Chão de estrelas”. Depois, Jardim Elétrico, com “Top top”. “Benvinda”, “Tecnicolor”, “El justiceiro”, “It’s very nice pra xuxu”, “Jardim elétrico”, e “Baby” regravada em inglês. Pra completar, em 1973, a despedida vem com “Posso perder minha mulher, minha mãe, desde que eu tenha o rock and roll”, “Vida de cachorro”, “Cantor de mambo”, “Balada do louco”, “Rua Augusta”, e a progressiva “Mutantes e seus Cometas no país dos Baurets”. Rita saiu dos Mutantes em 1973, sem espaço no meio da obsessão técnica de Sérgio. Arnaldo a seguiu, mas já estavam separados. O novo disco, “O A e O Z”, foi fortemente influenciado por Mahanishvu Orchestra e Yes. Eu segui Rita Lee, paixão confessa. E ficava ao lado do Arnaldo, que lançou “Loki”. O disco, apesar de oficialmente não acabado, é uma das minhas obras primas. Mas as letras líricas e irônicas, as belíssimas e surpreendentes melodias acabavam ali, naquela separação de Rita e Arnaldo. Ela, virou a tia, hoje a avó do rock. Ele, pirado, ainda grava, vez por outra, depois de tentar o suicídio, vez por outra. Bom que não é bom em morrer como é bom em escrever canções. Enquanto escrevo e penso nas confusões que Ricardo Xarope arruma nos céus, escuto Let It Bed, do Arnaldo, onde mostra suas pirações geniais de hoje, tantos anos depois. Ricardo foi embora em outubro de 1987 para mares nunca dantes por ele navegado, imagino eu. Não sei qual era sua reencarnação, ele não me diz certas coisas do outro lado, nos nossos sonhos em comum. De lá, onde estiver, ainda curte “Os Mutantes” e os meninos da rua Doutor Veloso. Gosta, como eu, do lado anárquico de Arnaldo Baptista (que segue o rumo sem rumo ainda hoje) e da Rita Lee, que virou a mais pura alma de São Paulo. Ou melhor, a avó rock. Nossa! Só nossa! Mas agora, sem os famosos baurets do tim Maia. Os Mutantes mudaram a cara da música brasileira com um rock extremamente moderno, inquieto e bem humorado. Amparados pelos arranjos malucos do maestro Rogério Duprat, quebraram tudo no ano de 1968 em músicas que entraram para a história como “Panis et Circensis”, “Baby”, “Adeus, Maria Fulô”, “A Minha Menina” e “Bat Macumba”. Tudo entrava no liquidificador tropicalista e elétrico do grupo: canções francesas, folclore nordestino, Beatles, macumba e muito mais. Seus discos ainda hoje são indispensáveis para qualquer discófilo brasileiro que se preze. Entre bois, galos, pintos, galinhas, porcos e bem-te-vis, Arnaldo segue andando no caminho traçado por sua cabeça, naquele sítio perto de Juiz de Fora. Se encontrando com sua coruja, cortando jaca por estradas e ventos. “Se eu casei com ela, ninguém tem nada com isso”, canta, com a voz rouca em seu ultimo CD, Let It Bed. Os meninos da Doutor Veloso, que se reuniam em frente ao nº 1342, sob a guarda de “Sêo” Romeu, pisam o silêncio, como o caminhante noturno. Alguns partiram, alguns ficaram. Ricardo Xarope foi um dos que partiu não sei pra onde. Embora nos encontremos sempre, evita falar para onde vai no final do papo. Udo Fidelcino aparece, vez por outra. Agnaldo virou Charles, Juventino virou Tino e João Batista, Joba. Estão na batalha do dia-a-dia. Com isso, esfriam-se as relações... Nossa música, piorou muito. Seria hora de escutar a Rita Lee de 1977: “Ai, ai meu Deus/ o que foi que aconteceu/ Com a música popular brasileira?” Ou relembrá-la em 1970: “Dizem que sou louco...”

Enquanto seu lobo não vem (Leya Bloodmary de novo)

Leya Bloodymary nunca havia puxado um fumo, até que foi convidada para ir à casa de um casal de amigos. Foi durante um carnaval. Drogas? Já havia passado por muitas na vida. Lembra quando seu pai colocava um frasco amarelado de lança-perfume na sua mão - comprado na Casa Jabbur -, e a deixava no baile da tarde do Clube Montes Claros, da Dr. Veloso. Montes Claros era uma cidade mineira conhecida por ficar próxima a Janaúba, que tem um lago onde, segundo a lenda, vive um monstro pré-histórico. E ali, no Clube Montes Claros, ela se soltava. Gostava da dança e daquela libertinagem liberada à tarde. Tinha confete, serpentina e Lana naquela adolescência. E Lana como amiga! Isto acontecia no final dos anos 1960, quando ainda existia folia no Clube Montes Claros e a alma do carnaval montes-clarense, seu Roque (Ferreira Barreto) segurava a turma até a manhã do dia seguinte com aquele seu tambor de marcação. Canhoto, tocava quatro noites sem parar nem para beber água. Estremecia as paredes. Mas, e Lana? Lana era sua amiga que após um périplo pela América do Sul, surtou. Talvez seja uma característica daquela geração, o surtar. Tomou tanto chá e viveu amores inquietos nesta viagem, que voltou atormentada por não poder colocar tudo em um único livro. Nunca escrito. Mick Jagger mais Greta Garbo mais Oscar Wilde. Lana interrompeu sua carreira de quase escritora em 1983, após 10 anos de tentativas. Foi criar peixes em uma fazenda no Projeto Gorutuba, onde conheceu Marquinhos Ribeiro e José Carlos Moreira, por quem mantém, até hoje, uma paixão secreta. Plantou arvores e peixes e vive por lá, sonhando em ter um programa matinal de agricultura na TV Serra Geral. Atividades bastante estranhas para uma mulher de amores inquietos e que sempre teve a vaga sensação que tudo ainda é pouco. - “Mas o que é que Lana fez na vida que não seja estranho?“, lembra Leya... Como Leya! Mas Leya nunca havia puxado fumo! Na verdade, viu seu amigo Juventino dia daqueles, risonho e franco, no final da Rua João Souto, sentado num muro, rindo a dedéu, depois de dar uma tragada num cigarro esquisito. Não sentiu atração nenhuma por ele. Nem por Juventino. Já havia passado por experiências antes. Uma delas, na casa de um namorado, Gêra, numa sessão que, embora regada a uísque e coca, ficou em sua memória. Ao acordar no outro dia, nua, sentada no sofá, com a televisão preto e branco ligada notou que o prato de comida - haviam feito um mexido na noite anterior? - estava com uma cor estranha. Provou e descobriu que tinham colocado um achocolatado. Descobriu ter usado Toddy no lugar de farinha de mandioca. Mas maconha, até então, nunca. Naquele dia - ou seria noite? -, vodka com maracujá, cerveja gelada, tira gostos diversos e muita música de Jethro Tull levou à cena gnomos, fadas, Lúcifer, crianças prodígio, vagabundos asmáticos, mendigos-filósofos, popstars neuróticos. Tudo num clima de ironia, algumas blasfêmias e obscenidades. Resultado: uma noite sem cerimônia. Ménage à trois. E naquela noite Leya tragou pela primeira vez. Algum tempo depois, contou pra turma a experiência, num papo em um barzinho serelepe no centro de Belo Horizonte. Naquela mesa, quase uma da manhã, se dividiam Ismoro da Ponte, Zacarias Mercau, Alexandre Magno, Gilberto de Abreu, Yone, Mário Boy e o próprio Elthomar - que a comia com os olhos por causa de sua cor de jambo e pecado. Lembrou a consequência do trago. Naquele dia disse ter feito um amor mui’louco, lindo e sóbrio o possível, com aquele tchan sensual. O próprio Elthomar Santoro Junior a definia: naquele momento o seu reflexo não tem nada a ver de sexo, nem de complexo, só de circunflexo. Afinal, naquela época eram líricos, loucos e soltos. Como a vida em alto mar, altomar, elthomar... Formavam uma patota que vivia e inventar coisas, propor coisas, discuti-las. Fosse em Montes Claros, fosse em Belo Horizonte, Janaúba ou Cannes. Isto aconteceu no período da grande ressaca, que veio depois do desbunde dos anos 1970. Foi naquele ano, 1984, um ano antes do Rock’in Rio, quando ela trabalhava no Elephantástic, que Leya se achava bem na vida. Tinha se separado de um amigo e morava em um apartamento da Ciosa. Exatamente 40 metros mal medidos abaixo, Coronel Georgino Jorge tinha seu escritório de advocacia. Ela recebia no apê, quase todas as noites, os amigos. Eram saraus animados que rolavam noite adentro. Hoje, Leya Bloodymary vive, atua e cria no plano da inconsciência. E ninguém que se proíba tirar os pés do chão da vida real será capaz de entrar em contato com a melhor parte do que ela faz, do que tem a dizer. E não precisa mais do que alguns minutos com ela para também concordar. ... No sofá vermelho de sua sala de estar, na Rua Governador Valadares, naquele desacerto arquitetônico do centro, Leya Bloodymary tem um cigarro aceso na mão e um controle remoto na outra. Ela zapeia a programação da TV, que prende seu olhar. Nada como um domingo jogado à preguiça, a vida real. E nada é melhor do que a nossa vida real, feita dos pequenos problemas do dia a dia, dos problemões, dos pequenos prazeres reais. O papo vai do surreal ao irreal naquele domingo pela manhã. O som que chega péla janela vem da Feira de Artesanato, alguns metros abaixo, na Praça da matriz. O papo vai e volta falando das amizades e das relações. De Quinzim a Manoel Oliveira, de Gabriel a Mirinha Maciel, do Ataq-cardíaco a Jota Dias, até chegar a Gélson Dias. É fã de carteirinha de Gêdê, que conheceu na antiga ZYD-7, na Simeão Ribeiro, ainda na época de Daniel e Geraldão. Diz se aconselhar com o horóscopo dele todos os dias, na Educadora AM. Atribui a Gêdê o título de um velho jovem sábio, por ter comportamento sereno – embora tenha conquistado esta serenidade só nos últimos anos -, o voicer-over da existência. De fato, Gêdê, que aparentemente nunca foi jovem, nem velho, instila uma esperança profunda advinda da experiência. Leya é tarada ainda hoje por pinturas, observo. Gosta de pintar quadros eróticos. Não sei se vai fazer uma exposição nesta cidade tão correta. Suas obras estão ali, espalhadas pela sala. São pelos pubianos, seios, nádegas, e até o pênis ereto de algum modelo montes-clarense. Ela ri, gostosamente, quando falo sobre isso. Ah, se você soubesse o perfume que as águas teriam se o tivessem... Leya nunca prometeu a ninguém noites de incendiar o lençol, nas noites com ela, principalmente após um jantar em Madame, na Vila Ipê, nos idos de outubro de 1978, ouvindo o burburinho do Córrego Pai João ao fundo. Nestas noites, sempre em outubro, quem esteve com ela diz ter visto estrelas no céu que se fazia no seu quarto. Porque ela nunca deitava em uma cama que não fosse a dela. A memória chega a uma quarta-feira, 13 de outubro, de um ano esquecido, em que fomos ao baile das fadas. Noite escura de um outubro negro, mês de alegrias e pesadelos, em que ela percorria os corredores da minha alma. Leya diz que se tivesse coragem, rasgava o caderno de telefones e fazia outro, só com o nome das pessoas que estão guardadas dentro do seu coração. Pra isso, ela não precisaria de agenda...

Marya Pina Colada, uma estória

Época de Festas de Agosto em Montes Claros. O pai de Marya Pina Colada era francês, não falava português – Marya servia de intérprete, e os dois se adoravam. Em compensação, Marya tinha medo da mãe – na sua presença voltava a ser a menina da mamãe que era espancada dia sim, dia não. Os pais moraram em Martinica, um departamento ultramarino insular francês no Caribe, com fronteiras marítimas com a Dominica e com Santa Lúcia. De lá, vieram parar em Montes Claros, através de um convite de Hermes de Paula. Aqui, nasceu Marya. O Pina Colada do seu nome veio na adolescência - pelo gosto que tomou pela bebida que seu pai adorava fazer. Morou durante um tempo num casarão da rua Dr. Veloso, e foi lá que a conheci. Marya fazia aquela brincadeira do copo. Fazia o copo andar e responder questões soletrando as palavras a partir de letras escritas numa mesa. E aquilo, naquela época, chamou a atenção. Afinal, eu e meus amigos podíamos, assim, falar com os espíritos que tanto nos assustara na meninice. Ela foi uma das primeiras mulheres a estudar no colégio São José, colega de Rita Zuba, Beth Guimarães e Mirinha Maciel. Na fase adolescente, já morando sozinha, Marya gostava receber os amigos em sua casa, de cozinhar - e fazia isso muito bem, mas só macarrão, que comia todos os dias. Gostava de trocar receitas de temperos e cozinhar para os amigos e visitas, às 4 horas da manhã, depois de rodar a cidade com a turma. Quando ia aos restaurantes – Espeto de Ouro, Armando’s, Mangueirinha - chegou a inventar um coquetel de vodca com cajá-manga, que fez sucesso no Couro de Boi -, metia-se pela cozinha e dava palpite no conteúdo das panelas. Aprendeu a ser enxerida com Olguinha, irmão do Zezinho Beleza, um cozinheiro supimpa que José Amorim descobriu quando abriu o Espeto de Ouro. Era uma mulher gentil, mas também passava a “sensação de perigo”, sujeito a súbitas explosões de violência, mas que acabava lhe dando um certo charme. Sua fase áurea foi a mesma de Leya Bloodmary, mas não chegaram a ser amigas como deveriam, embora convivessem bem. Ciumes, dizem os amigos. Um dos seus sonhos era ser secretária de um prefeito. De Toninho Rebello a Athos Avelino, aí passando pelo Moacir Lopes – a quem ‘namorou’ tanto Paulo como Moacir Junior -, Tadeu Leite, com quem flertou na época de vereador, Jairo Ataíde... Foi amigo de todos os prefeitos montes-clarenses, mas nenhum cogitou seu nome para o cargo. Secretária de Cultura, nunca! Talvez por conta das pessoas estranhas que, às vezes, entravam em sua vida. No início da década de 1990, encantou. E quase sumiu. Justo ela, desbundada, que andou nua ao som de Raul Seixas, Gilberto Gil e Os Mutantes no festival conhecido como o Woodstock tupiniquim. Encaretou! É bom abrir um parênteses: Marya Pina Colada foi a quase todos os festivais de Águas Claras – inclusive no último, transmitido pela Rede Bandeirantes – naqueles distantes dias do final dos anos 1970 e inicio dos anos 1980. Ela e vários bichos grilos montes-clarenses, sob a filosofia do amor livre. Como Marcos Oliveira, Roberto Luiz, Fatinha e outros. Saiu de Moc e foi até Iacanga, em São Paulo, de carona, com aquelas roupas hippies, aquele cabelo louro de brilhar ao sol, e sem usar calcinha, coisa que não faz até hoje, conforme me segregou. Nem deixou aquela antiga vestimenta para trás. A que dá a ela, ainda hoje, aquele ar exótico e erótico. Dia destes, lembramos a vida e a viajem, durante uma cervejada no bar do Baixim, no bairro do Melo, entre uma Canarinha e outra, depois de muito tempo sem nos encontrarmos. - Só tinha maluco, cara”, disse com aquela voz estridente, característica dela. Magrela, alta, continua com seus traços lindos. “A gente usava maconha e chá de cogumelo, dormia cada dia com um. Ninguém era dono de nada. Foi uma experiência ducarái!” Hoje, Marya é escriturária do INSS, formada em filosofia, advocacia e administração, e que sonha, um dia, ser Juíza de Direito. Não sei se com esta idade ainda vai dar pé! Não usa drogas, mas bebe uma cerveja e uma “boa” cachaça, como gosta de dizer. Pina Colada deixou de lado. É mãe de uma garota careta, que com seus 28 anos, ainda procura saber o que é namorar. - Em Águas Claras, dormi um dia com uma mulher estranha, numa espécie de nave espacial. Ela se chama Estelita, não vou esquecer este nome nunca! Acho que naquela noite fui abduzida. Lembro-me pouco do que aconteceu. O dia de cogumelos deixa a mente embaçada”, recorda. “Mas que rolou alguma coisa, rolou. No outro dia meus braços estavam roxos, e eu estava muito feliz, com uma dor gostosa entre as pernas. Outra vez fiquei com Sétima Luz, e tudo rolou de novo. Que experiência! Elas vieram da Nebulosa de Órion, e devem ter voltado para lá. E olha que já se passaram 30 anos. Época boa aquela, festival gostoso aquele. Todo mundo tomava banho pelado,” diz com certa melancolia e saudade. Lembro que costumávamos sair, costumávamos trocar idéias. Assunto era o que não faltava. E nesta conversa, não faltou mesmo. A cidade, a vida, a infância, sexo. Falamos sobre tudo. Até do novo bar do Egídio, que Marya está doida para conhecer. Mas a cidade rouba nosso coração, o esconde no meio dos carros, das pessoas, das ruas. Devora! Marya fala sobre a vida abre o coração – roubado pela cidade? – e deita a falar. Lembro de seu rápido namoro com Bob, Roberto Luiz, irmão do Ernesto. Às vezes brigavam por parágrafos, como se passear por florestas, em busca de crônicas e cogumelos. Às vezes, se davam bem, amavam-se, como se a floresta fosse logo ali na esquina. Seria a menina filha de Bob? Marya, alegre, me conta que foi mordida por um lobo, quando atravessava os Estados Unidos, naqueles anos loucos. É sábado à tarde, a cerveja gelada, a cachaça, o calor, a carne de Baixim vem com farofa de andu. Uma delícia. Faz mais de 40 graus em Montes Claros, mas ela está de preto, crucifixo no pescoço e um sorriso largo no rosto. Na mão, um livro de Anne Rice. Abre a bolsa, dentro está Drácula, de Bran Stocker. Diz ter começado a ler Crepúsculo, incentivada pela filha, mas não se interessou. Muito adolescente. - Minha saúde não andou boa nos últimos tempos”, diz, acrescentando que vai passar a virada do ano no Rio de Janeiro. E lembra: “foi um dos grandes momentos da minha vida, ver os Rolling Stones na praia. O Cristo no alto do morro é a coisa que guardo desde que vi numa pornochanchada”. Por isso, quer voltar lá. Não sei se pela pornochanchgada ou pelo Cristo Redentor. Marya não terminou a última faculdade. “Parei! Fui péssima no São José, era época de porres e descobrimento de vida. Depois, fiz faculdades demais para virar escrituraria do INSS. Quero é me aposentar. Você se lembra de Mirinha?”, pergunta, e diz que tem muitos anos que não a vê. “Tenho saudades dela, e olha que moramos pelas mesmas bandas...” Tomara que se encontrem, penso eu. Noto que Marya está mais magra. “Voltei a correr, gosto muito do meu corpo. Ainda dou um caldo! Quer experimentar?”. Quem diria, naqueles tempos de Rebordosa. “Naquela época comia e bebia muita besteira. Tem uma hora que você quer ficar bonitinha”. A voz está mais lânguida, o tira-gosto acaba. Ela sorri, diz que vai embora. “Outro dia a gente conversa mais”. É! Outro dia. Ela vai, na porta dá um tiau, entra no carro. E continuo com os mistérios que rondaram nossos silêncios e eu nunca quis quebrar... As Festas se Agosto parecem nos trazer aquele sabor de infância, adolescência, e uma tranquilidade de ver que, por mais que as coisas estejam mudando tão rápido, algumas continuam as mesmas.

Nos dias de hoje...

Como a maioria das cidades, Montes Claros está em constante estado de mudança. Uma barbearia vira ponto de jogo de bicho. Uma casa vira zona. Uma mercearia, puteiro. No coração da cidade, então, ocorre uma revolução. Os moradores são despejados para que o comércio floresça. Coisa de grandes cidades? Ou de cidades grandes? Montes Claros, o que é? Muitas coisas fazem de Montes Claros uma cidade especial. E diferente de todas as outras. Mas na verdade a aldeia de Augusto Vieira é um labirinto místico, onde os grafites gritam, a ganância vibra, a vaidade excita. Nela, ninguém vai pro céu. Dizem que há uma revolução na vida privada da cidade - como se a cidade tivesse vida privada -, com consequências metafísicas e políticas quase infinitas. É esperar para ver. Quando se conhece só a rua Dr. Veloso, você vai só até determinado quarteirão. Mas quando se descobre que ali já existiu carteado, bares, botecos, cabarés e restaurantes, e o fundo de um cinema, que dava para o número 384... é uma loucura! Não dá mais para voltar no tempo. Você já virou outra pessoa: Alberto Graça, Carlos Alberto Prates Correia, Luis Gustavo, Lara Araújo? Ah! Sobre a falta de... E ali, na escadinha do Clube Montes Claros, os garotos da rua, amor das meninas, mascando chicletes com seus canivetes... Isto é jeito, menino, isto é fama, garoto!? Os heróis do bem prosseguem na brisa da manhã. Romildo Mendes, Ricardo Teixeira, Eliane Ivo, Ernane Camisasca, Eliane Jansen, Djalmir Lima, Sebastião Soares, Eustáquio Marques, Délcio Costa, José Manoel Pereira, Manoel Oliveira. Inventei crimes e histórias para vocês. Ah! Como é difícil tornar-se herói... Quando lançou em 1978 a música Cartomante, Ivan Lins e Vitor Martins pensavam apenas na evolução da democracia que naquele ano, lenta e gradual, já se podia ler (e ouvir). Mas em Montes Claros, nos dias de hoje/ é bom que se proteja/ ofereça a face/ a quem quer que seja. Nos dias de hoje/ Esteja tranquilo/ Haja o que houver/ Pense nos seus filhos... Passados 33 anos, “Cartomante” continua atual em Montes Claros. A onda de assassinatos iniciada alguns anos atrás – numa briga de gangues em busca de pontos de drogas, segundo a policia, numa queima de pessoas por um esquadrão da morte, segundo alguns policiais – ultrapassa os 100 neste ano de 2011. E não respeitam homens maduros ou adolescentes, crianças e velhos. Nos dias de hoje/ não lhes dê motivo/ porque na verdade/ eu te quero vivo. Quando passo pela rua Dr. Santos, meu envelhecer é um ditongo a mais, uma exclamação! De ais... Meus dias são dias descrentes, dias de feiticeiras ausentes, de neve, sempre presente no sertão do meu coração... São maus necessários! O Bar do João veio bem depois daquele tempo em que Mário Ribeiro receitava penicilina para curar doença venérea, em que a Rádio Nacional nos mostrava os caminhos de Jerônimo, o herói do sertão. Veio no tempo certo, e João foi para o céu no tempo certo. Coisas que só Deus vai explicar. Um dia! Montes Claros nunca chegou a ser uma grande boca de mil dentes, como via Mário de Andrade sua São Paulo. É uma cidade que vive a trancos e barrancos. E tome barracos, que se criam cada dia mais, embora o poder público não enxergue. Coisa mais sem juízo. Como o juiz Augustão, que inventou o juízo e a falta dele pela mesma medida justa. Nesta cidade, ganhei meu cabelos brancos, minha rugas. Mas estas rugas valem tanto quanto o olhar tímido da morena que passa por mim na viela perto da secretaria de Cultura. Dia chuvoso, trânsito parado. Vi gente se beijando na rua. Fazia muito tempo que eu não via isso. Beijar na rua. Montes Claros é uma cidade que tem vitalidade nas ruas. Há gente de diferentes cores e andam cinzas na chuva onde antes era o bar de Zé Priquitim. Gritam, oferecem táxi para Bocaiúva. Coisa de cidade grande? Ou grande cidade? Lá está Geraldo Mundial com o olhar generoso e a fala gentil. Ele é sereno, sentado no banco da Simeão Ribeiro, o quarteirão fechado principal da cidade de mil dentes. Nesta época em que as pessoas não tem mais tempo, Geraldo Mundial nos mostra que o tempo é, sim, senhor da razão. Mas o diabo, como se diz, mora nos detalhes. Onde começa e onde acaba a Rua Ruy Barbosa, que um dia um prefeito sonhador queria transformar em Avenida? A Avenida que hoje, resolveria o caos do trânsito na área central. O cheio de frutas, amora, maracujá, goiaba, manga rosa e ubá. É o mercado. Mas onde está o canto que a gente ouvia perto daquele mercado? Eu a ouvia cantar todo sábado. Era um canto pujante, quase um lamento, como lembrou Itamaury Telles. A cega Etelvina, que cantava sentada na escadaria do Armazém Pinto era um pedido de caridade. Para onde foi a música que, agorinha mesmo, a gente escutava? Talvez Virgínia (de Paula) saiba onde foi parar o Repente de Pedir Esmola, perpetuado por Teo Azevedo em um disco .Ai! Virgínia, amiga e madrinha dos animais. Inclusive de mim, pererequinha sem juízo. Às vezes penso que Virginia veio de um reino encantado. Sensitiva e intuitiva. Mas em sua solidão cabem muitos afetos. E ela os distribui. Silenciosamente, à sua maneira. Mas os distribui. E com isso irradia... Peço desculpas por lembrar tanto da minha cidade de alguns anos atrás. Mas a de hoje é um sufoco, um tormento, com uma violência de dar dó. Se andar no passeio, pode-se quebrar a perna ao pisar num buraco. Se para a rua, pode-se ser atropelado por um motoqueiro que não sabe as regras do trânsito. Sair de carro, não dá: tem buraco demais e ruas de menos para tanto automóvel. De modos que falar de Montes Claros antiga, de seus causos e cousas, talvez nos dê alento. Mesmo assim, peço desculpas se ofendo alguém que está enjoado com a antiga – e são milhares – e adoram andar pela Nova Moc. Aliás, Nova Moc é coisa antiga, dos anos 70, Moc 70, do Toninho Rabelo. Mas prometo ser menos leviano a partir de agora. Afinal, quem muito se evita, se convive. Tenho medo também de estar na absolescência. De me tornar absoleto, descartável, ultrapassado junto com os meus velhos LPs, vídeo-tapes e fitas k7. Não tenho medo do moderno, do contemporâneo ou do que há por vir. Nem medo do envelhecimento, de ganhar uma auréola, ou de espocar a cilibina. Pois no fim, contrariando Eduardo Lima e o delicado destino dos contos, não haverá um suicídio coletivo, para salvar os erros cometidos. Afinal, sobre o silêncio, só nos resta silenciar quando é tempo de tatufaia. Eta, confusão...

O homem velho não virou estrela. Constelação!

O homem velho plantava morangos em seu quintal. Em um ou dois vasos, não me lembro bem. Um era um penico antigo. Produção pequena, toda direcionada para sua neta. Dois três talvez quatro ou cinco exemplares por ano. Não tão vermelhos. Nem grandes. Miúdos. Mas miúdos só por fora. Por dentro tinha muito mais. Sua neta os saboreava com boca de amor. E respeito. Plantara mangueiras, jabuticabeiras, uma infinidade de pés de fruta em seu quintal ali na Malhada das Almas. Viajara por terras estranhas, vira o que queria e o que não queria. Um dia o homem velho deixou a vida e a morte para trás, como escreveu aquele velho cantor baiano. Agora, o homem velho está no céu. Virou constelação. Tuivaé, como a chamam alguns índios. Tuya, em guarani. Pega o bastão no céu. É sempre em dezembro, na segunda semana, que ele gosta de vir me ver. Ou deixa a mim, vê-lo. Surge ao anoitecer, no lado leste, e nos traz o Verão. Sabe que precisamos desta estação. Ele partiu num agosto, um dia qualquer. Me avisou que estava indo, que tinha chegado a hora, mas não disse que ia virar constelação. Eu estava vestido de branco aquele dia, naquele ano, 1992. Era agosto, começava a política, lembro-me bem. Uma semana antes estivemos juntos, conversamos sobre o céu e a terra, a vida e a morte, bebemos uma cerveja e uma cachaça no Mangueirinha. A gente não sabe a que veio, se é a passeio, se é passagem. Eu não sei nada sobre se preparar para a morte. Quando me acho preparado, vejo-me especialmente despreparado. E, pelo resto da minha vida sei que vou ter que lidar com isto no momento em que acontecer. Eu imagino a estrada onde um dia eu vou parar. Como Luiz diz, ainda que eu mereça, não gostaria de ir diretamente para o céu, quando chegar a hora. Quero me despedir de coisas, dos amigos, das matas, das minhas crianças. Tocar um violão que nunca toquei. Ver minhas terras do sertão que ainda não vi. Naquele dia, soube depois, ele se despedia de mim. Eu estava num restaurante jantando, quando ele passou de repente. Passou direto, olhou para mim, com aquele olhar que só ele sabia dar, o chapéu cinza, meio sujo da vida, os cabelos que tinham a tristeza de néon. Foi na direção do balcão. Achei que ia pediu uma cerveja e um dedal de pinga. Viriatinha? Não! O homem velho apenas sumiu entre as almas presentes enquanto eu, tentando acreditar no que havia visto, coçava os olhos, naquele restaurante da Inhumas, noite quente de agosto. O homem velho partira, deixara a vida sem saudades, sem dívida, sem saldo, sem rival. Foi se despedir. Só mais tarde fiquei sabendo que naquela hora, estava indo. Mas que ficava. Deixou o recado que bastasse eu olhar, nem precisava chamar. Ele, para toda a minha vida, sempre estaria ao lado. Talvez para me lembrar de molhar os vasos onde estão plantados os morangos, miúdos, que sua neta saboreava com boca de amor. E respeito. Talvez só pra falar oi, chegou a hora. Querer esquecer algo, acho que é completamente compreensível. Mas lembrar a ponto de se deixar assombrar, é ruim. Pois o homem velho me visita nas noites de Verão. Não me assombra. Chega quieto, como era seu jeito de chegar. Senta na cama que durmo e entra em meus sonhos. Ai sim, vivemos aventuras de aventurar. Aquelas que não tivemos oportunidade de fazer antes. Foi ele quem me mostrou o sertão. E sendo o sertão plano, pleno, a terra cabe irrisória parte do seu horizonte. Céu de nuvem, de estrelas, céu de sol, céu de lua. Sertão é lugar pra ver céu, me ensinou. Sertão é uma espera enorme, diz Rosa. Enquanto o mundo corre pra lugar nenhum. O homem velho ensinou-me a pescar num destes rios que o progresso da cidade afogou. Com terra e lixo. Ele sabia do brilho intenso das estrelas, da força da lua e do sol quando nascem e morrem nas margens dos rios. E tentou me mostrar, pois conhecia o bem e o mal. Não há vida mais feliz pra se viver, dizia. O homem velho era militante do PCdoB. Quando os militares assumiram o poder, foi contra pegar em armas. A revolução, para ele, deveria ser a de idéias, discussões. Foi contra o partido instalar a guerrilha no Araguaia. Lembro-me dele naquele 31 de março (ou seria primeiro de abril?) queimando livros, jornais, revistas e anotações que recebera da Rússia, num quadradinho ao lado da casa. Era pecado, perguntava eu, ler o que estava ali? Com seu comportamento sereno e o voice-over da existência, apenas olhava. E aquele olhar instila ainda hoje uma esperança profunda de experiência. Foi o homem velho quem me ensinou a andar por aqueles lados, das famílias mais carentes. Foi ele que colocou amor no meu coração. Sabia que o mundo não cabia nas suas mãos. Sem se atropelar com as palavras, sem se perder em turbilhão de arco íris. E quando me vejo cheio de problemas vem ainda hoje a mim e diz palavras sábias: deixa estar! Lembra música. Tinha mente de homem e coração de menino. Era tranquilo, calmo, paciente. Não gritava. Não se desesperava. Era do futuro e não do passado. Pensava com clareza, falava com inteligência. Vivia com simplicidade. Sempre tinha tempo. Não desprezava nenhum ser humano. Mas era cuidadoso. Como não andava a cata de aplauso, jamais se ofendia. Causava a impressão dos vastos silêncios da natureza. O céu. O homem velho era macho, mas não se incomodava de ser um doce com a mulher que amava. E quando ela saia, viajava, levava a alegria do seu rosto. Você não vai sorrir nunca mais? Nunca mais? Só se você deixar, respondia. Eu deixava, mas o sorriso vinha só quando ela voltava. Aí sim, a alegria reinava. Me ensinou que do amor que um dia me foi depositado eu, sozinho, não posso beber mais se não ensina-lo para outros. Mas como é difícil esta missão. Ficou dele suave lembrança de antigamente. O teu jeito menino, a tua voz mansa, o andar calmo. Ainda há no ar o seu aroma. Ainda há lembranças de passeios a Lapa Grande, longe, de trás daquela serra por onde passa boi e passa boiada... Ainda há lembrança de noites de lua, nas noites altas, Sêo Pedro e Arinha e aquele montueiro de gente com Sêo Nivaldo dedilhando a viola e soltando a voz. A gente, timidamente, tentando cantar repentes, folclore, os merengues da vida. Mas o ônibus partiu... Eu vi o homem velho rindo numa curva do caminho de Hebron e ao seu olhar tudo que é cor muda de tom... O homem velho deixa a vida e morte para trás. As coisas migram e ele serve de farol...