domingo, 20 de novembro de 2011

Viver e reviver

Não podemos segurar o mundo. Ele roda, quiçá, muito mais rápido que queremos. E mais lento do que precisamos. As sensações são como brisas, que vem lavar a alma e se vão. Fica o perfume. Que não fique o remorso do que não foi feito, e sim o prazer de viver plenamente.
Isto me leva ao Bar do João, quatro portas grandes, a esquerda da Dr. Santos, um pouco acima da casa onde era o Hospital Prontocor – antes uma pensão que recebia o povo de Taiobeiras. Ficava no quarteirão entre dois Dons: Pedro II e João Alves Pimenta, ao lado da Pensão Mato Verde. Ali tomei porres comendo dobradinha, tomando Brahma e cachaça com amigos e amantes. Ali foi o montesclarino John Sebastian bar... Tinha um balcão grande na frente e uma entradinha para o reservado. E João com a música dos Beatles tocando sem parar. Tanto que chamávamos o local de Beatles Bar.
Ali, um dia, meu anjo descabelado caiu em cima de mim. Caiu por engano – ou quem sabe, não? Um anjo torto, desses que vivem na sombra. Caiu e bebeu uma cacha-cola, mistura de uma cachaça desdobrada com coca-cola que era servida, já que não havia dinheiro para lhe pagar uma Cuba Libre.
No Bar do João acontecia destas coisas. Até anjo caia em cima da gente, quanto mais pessoas. Talvez faltasse o pó de pirlimpimpim...
Hoje, olhando meus cadernos de viagem, é que percebo que as portas e janelas daquela paisagem tem alguma coisa daquele anjo torto, descabelado. Não há nada abandonado num passado que se fez com todo o possível sentimento. Volta e meia tudo volta, e vemos que a história não morreu. Estava só guardada lá dentro da gente.
A época do Bar de João bateu com o tempo em que eu fazia Tiro de Guerra, quase 40 anos atrás, em que os sargentos Bhaumer, Telles e Camargo tentava ensinar o que é bom e o que é mau, sem nunca dizerem de que lado estavam: do bom ou do mau...
O Bar do João viveu mais que aquele ano de 1972. Naqueles anos em que frequentamos o lugar – eu, Felipe Gabrich, Yuri Poppof, Sebastião Soares, Washington Luiz Neném, Ricardo Xarope, Manoel Oliveira, Hudo Fidelcino, Eduardo Brasil, Ceumar, Daguinha, Kyriê, Léo, Glória, Setemeses, Nôra, Juventino Dário, entre tantos – comentamos sobre o ‘Ultimo Tango em Paris’ e as belezas do corpo de Maria Schneider; falamos e cantamos músicas de ‘Cabaret’, fazendo coro a Liza Minnelli e ainda discutimos com ar de intelectuais o porquê de Darlene Glória em ‘Toda Nudez Será Castigada’. Foi nas mesas do Bar do João que torcemos pela rebeldia de Patty Hearts e saboreamos ‘Garganta Profunda’, sem nunca assistir ao filme.
Naquele boteco de quatro portas altas, madeira, em plena Rua Dr. Santos, escutamos, à noite, o rock e soul de Big Boy pela Mundial. ‘Vapor Barato’ a ‘Maracatu Atômico’, passando por ‘Pérola Negra’, ‘Ouro de Tolo’ e ‘Sangue Latino’. Tudo teve parada obrigatória ali. Além dos Beatles, que nunca deixaram de tocar.
Até a guerrilha do Araguaia foi discutido entre uma e outra cachaça. E a guerrilha que iríamos fazer, e nunca fizemos.
Vinho, underberg, baseado! Tudo entrava – e saia!
Inclusive Rosinha (pra não dizer seu nome verdadeiro), a rainha das 1001 noites mal dormidas, que fazia em nós, frequentadores, um aperfeiçoamento do Kama Sutra, para evitarmos naufrágios de alcova. De graça, e no banheiro unissex. Foi ali que muitos de nós conhecemos as posições mais prazerosas e aprendemos passo a passo como executá-las durante a transa, garantindo um gozo mais forte.
O Bar do João veio na hora certa!
Hoje, sinto como se tivesse passado quase 40 anos vendo aquele filme. João que se foi tão cedo para o andar de cima: you are there!
João que curtiu o tempo e o vento, principalmente um tempo em que a palavra liberdade era dita no escurinho do cinema – ou do seu boteco–, mas que vivíamos bem no seu barzinho tosco da Dr. Santos.
Na verdade, o início dos anos 70 foi um tempo em que meu anjo descabelado caiu em cima de mim, numa noite de verão. Um anjo louro, época em que ‘DOI’ era código e Biotônico Fontoura deixava muita gente doidona.
E hoje, relendo meus cadernos de viagem, meu anjo volta e reconhece pessoas que me viram de passagem e também puderam ver quem estava ali.
E se um dia desses eu encontrar por aí com quem estava ali, naquele tempo, meu anjo vai dizer que somos da mesma semente.
Somos nada mais do que gente.
Eu não devia te dizer, mas essa lua, esse conhaque, botam a gente comovido como o diabo.
Que o diga Drummond...

terça-feira, 6 de setembro de 2011

A garota de 17 anos faz zum zum e mel

Amigo meu, quase na meia idade, está apaixonado por uma garota de 17 anos.
Destas paixões absurdas, de andar lembrando – e babando – por ela a toda hora. De suspirar profundamente quando o pensamento balança a pança e o sorriso vem aos lábios.
Perto dos 60, este meu amigo - que vou chamar de Denner, em homenagem a um quase irmão -, voltou a ser criança. E resolveu curtir a vida. Adoidado!
Está certo! Afinal, depois de anos de casamento, a vida pode cair numa monotonia. Mas o homem continua a pensar em sexo, mesmo cinquentão, com a mesma ansiedade de adolescente. E até pior, pois aí já existe aquela maturidade, aquela experiência e ainda aquela curiosidade por um ou outro ensinamento do Kama Sutra não colocado em prática ainda.
O pior é que não se consegue um passe livre da esposa para, pelo menos, um dia na vida.
Pois este amigo, o Denner, desimpedido, tem a vida toda pela frente... Ou o que resta da nossa vida pela frente.
Não sou contra este amor quase outonal. Existem outros até mais velhos. Afinal, a vida é uma só. E ele tem que olhar muito ainda para sua frente.
E uma mulher como esta menina de 17 anos que arranjou, que faz zum zum e mel em seu ouvido - mesmo que for só em pensamentos -, o deixou mais novo. Renovado. Recuperado. Restaurado para esta terceira e última parte da vida. E com um sorriso de criança no rosto.
E como é difícil chegar a esta idade com um sorriso de criança no rosto.
A garota de 17 anos cheguei a pensar comigo, pode ser um engano. Ilusão de uma cabeça que trabalha 18 horas por dia. Pode ser coisa de subconsciente. Mas como é ele o apaixonado, e ainda não me apresentou à mesma, fico no aguardo.
Pelo que diz com aquele sorriso de criança no rosto, penso até não existir tão formosura de mulher com tão tenra idade. Ou ela parece ter mais do que aqueles inocentes anos, na experiência da vida.
Mas como histórias de amor duram apenas 90 minutos, acredito que ele deva aproveitar ao máximo este tempo. Real ou ilusória mente.
Não sei como fará quando terminar sua hora e meia de paixão. Serão apenas mais dois olhos nus, anos-luz do seu amor?
É bom analisar o que é uma mulher de 17 anos na vida de uma pessoa mais velha. Primeiro, que esta pessoa não está mais na adolescência. Depois, a garota é menor de idade. Real ou ilusoriamente. E esse fato poderia constituir em crime.
Mas como o amor existe num plano diferente - que talvez o Iran Rego, mais chegado nestas coisas extraterrenas, venha explicar um dia -, o que pode atrapalhar um romance como esse não é a diferença de idade, mas o contraste de interesses. Mesmo ilusoriamente.
Como é a química dos dois? Não sei!
Nem conheço a menina de 17 anos, que anda pelas ruas de Montes Claros com sua saia curtíssima, vermelha, gosta de calcinha branca e caminha de salto alto no coração deste amigo de tantos anos.
Nem sei se ela, sentada naquele barzinho da Avenida Sanitária, ao cair da tarde - num bate papo regado a uísque com água de coco para ele, suco de açaí para ela - concordam em assuntos relacionados a sexo, moda e música.
Se neste papo descontraído os pais da menina de 17 anos estão cientes deste amor dela por um quase... Pai, avô...
E se este amor não tiver nada a ver com a menina de 17 anos? Afinal, ela deve gostar de frequentar lugares que ele odeia.
Ele pode discriminar os amigos pirralhos, criticar seu jeito infantil. E os seus hábitos – fumar, pensar em Cauby Peixoto, cantar Madalena, falar de Daço Cabeludo, Bala Doce e de Sêo Ênio, do Quintal... - com os quais ela não concorda e gente que nunca ouviu falar!?
Pode ser que a menina de 17 anos, que vai a Feirinha da Praça da Matriz aos domingos pela manhã só para ver Aroldo Pereira, esteja totalmente encantada apenas com o charme deste meu amigo.
Pode ser que ela, que gosta de Justin Bieber, esteja atrás apenas de seus 15 minutos de fama. Mas qual fama?
Pode ser que ela, que quer ir ao Rock in Rio este ano – já marcou em sua agenda que vai assistir aos shows do AC/DC, Paul McCartney, Avril Lavigne, Shakira, Elthon John, Red Hot Chili Peppers, Metallica, Iron Maiden, Ozzy Osbourne, Sepultura, Angra, Rihanna e Slipknot – esteja atrás apenas disso: a possibilidade de ir ao Rio, por um mundo melhor!
Pode ser apenas o fogo da paixão, que pode dar uma abrandada em alguns dias. Essa coisa de que os opostos se atraem é balela!
Tem gente com necessidade de trabalhar com o ego, com as questões do ego. Entender as estruturas da mente.
Tem gente que quer identificar as nossas mascaras e os escuros que tentamos olhar.
Tem gente que viaja para conhecer novas alturas.
Outras, para conhecer aquele prato que nem sabe pronunciar o nome.
Outros, ainda, para se reencontrar de vez em quando.
Denner, meu amigo, está encaixado nesta forma e em todas as outras.
Ele, de close em close, pode perde a pose.
Ficar desminliguido!
Apesar de Deus ser brasileiro, outros deuses vivem por aqui: Exu, Tupã, Thor, Alá, Oxossi, Zeus, Roberto, Buda e Oxalá.
E a garota de 17 anos.
A menina que faz zum zum e mel...
(Lá do bar de João, na Dr. Santos, vem um som: Eu corro, fujo desta sombra/ Em sonho vejo este passado/ E na parede do meu quarto/ Ainda está o seu retrato/ Não quero ver prá não lembrar/ Pensei até em me mudar/ Lugar qualquer que não exista/ O pensamento em você...)

Essa tigresa é só de brincadeira

Insaciável!
Uma máquina do sexo. Assim pode-se definir aquela gorutubana do Rio Novo. E como sabia fazer bem feito. Acredito que tenha seduzido metade da cidade só com o olhar e aquelas palavras doce que saiam de sua boca. A metade rica, é bom dizer. A outra, ficou só na vontade de conhecê-la. Mas todos os homens (e mulheres) de Janaúba a desejavam. Bruna Surfistinha ali era aprendiz.
Exagerada!
Nos beijos, no doar, no amar. Este, fazia com satisfação e nunca se satisfazia completamente na cama. Tinha que cair e rolar pelo chão, tinha que dar-se em pé, encostada à porta, a parede, ou sentada na mesa da cozinha, esfregando a pele do seu corpo contra o...
Quando fazia amor, era o chão, sem o chão. Era a leoa no cio, a tigresa na dança do amor. Uma deusa. Gostava de ficar no comando. Mas, conforme o jeito, queria ser comandada. Alta, de uma beleza mais interna que externa, cabelos cobrindo o olhar, o que a deixava com ar fatal de artista de cinema dos anos 50.
Queria falar de tudo, queria fazer de tudo, experimentava posições kamasutranianas. Tanto que encomendou ao Marcos Caíres, na Papelaria Guimarães, uma edição do Kama Sutra. Não sei se foi buscar...
Assim era aquela tigresa, uma beleza que aconteceu em Janaúba dos anos 70. E como num romance desmilinguido, ela me contou com certeza tudo o que viveu. De perto, ninguém é normal, às vezes, segue em linha reta a vida, que é "meu bem, meu mal". Era ela. No mais, as "ramblas" do planeta "orchta de chufa, si us plau".
A história de HP com ela foi engraçada. A estória de AP com ela foi romântica. A estória e as histórias de CN com ela, ele guarda no peito até os dias de hoje.
Estórias e histórias, pois Rosa já nos alertara que a estória não quer ser história. São coisas diferentes. História é o tempo onde as coisas acontecidas não acontecem mais. A estória é o tempo onde coisas não acontecidas acontecem sempre. Abacaxi e pitanga não é a mesma coisa. Mas um morango com champanhe, esta escorrendo pelo corpo, melhora tudo.
A Tigresa - vamos chamá-la assim - me falou que o mal é bom. Ela, que foi o arauto da geração sexual de Janaúba. Pois há o antes e o depois de sua passagem naquelas terras gorutubanas. Coisa que a envaidece até hoje, onde quer que esteja. Não queria ser mensageira de nada. “Apenas me ame como se não houvesse amanhã”, repetia sempre, num sussurro, no ouvido, na hora do bembom. Quando falava de amor e desejo, a boca se mostrava macia, vermelha. “É nela que está o meu pensamento”, comentou certa vez, sem que lhe perguntasse nada. Mas foi direto ao ponto, daquele coração atrapalhado.
Uma vez, vejam vocês, logo depois de fazer um amor suado, daqueles de ais e uis, em que as garras da felina marcam o coração. Daqueles que a garganta fica seca, o peito sufocado. Onde se rasga a vida, se move montanhas. Daquele amor que só ela sabia fazer, cheio de cheiros, maldades e felicidade no final, crazy he call’s me, louca me chamam. Pois, depois de tudo, começou a falar sobre as idiossincrasias de sua geração, enquanto bebia, gole a gole, água mineral gasosa. Pois ela, a Tigresa, não bebia nada alcoólico. Nem fumava cigarro, baseado em leitura que fez numa revista Grande Hotel, que ele provocava câncer.
Seu único vício, e sabia, admitia, era amar. Seja na cama, no banco do carro, nas areias do rio Gorutuba, ou mesmo um cantinho mais escuro da Avenida do Comércio ou da Francisco Sá. Movimentada, pois era melhor. Mas não com qualquer um. Tinha que ser com alguém que merecesse seu coração, sua confiança. E foram poucos, muito poucos, naquela Janaúba que todos (e todas) a desejavam.
Falou-me sobre as dificuldades e os prazeres que as pessoas de sua idade tinham, numa cidade do interior dos anos 70, ligada a tudo e a nada ao mesmo tempo, sem asfalto, sem futuro, com luz desligada às dez da noite.
Quando a conheci parecia tímida, cabelo sobre os olhos. Mas era espalhafatosa. Falou-me que seus amantes foram tantos e tão poucos, que se contava nos dedos de uma mão. Eles hoje estão esmaecidos, invisíveis. São personagens concretos que perderam a nitidez.
Ela, não!
Continua a mulher sagrada, vaca profana, derramando la leche buena toda en mi garganta, la mala leche para los "puretas”. A vida, às vezes, tem um lado. A vida, às vezes, tem dois lados. Quando ela é sol ela é eclipse, e quando ela morre é que ela vive. E para esta Tigresa, de divinas tetas, amar demandava coragem, mas era uma visibilidade apenas prática.
Teve uma única experiência digamos, psicodélica, quando caiu de amores por um radialista e ao mesmo tempo namorava um italiano. Era tomada de amores, chegou a me confessar, e não tinha ciúmes se eles também caíssem de amores por outras. Ia para Montes Claros hospedar-se no Hotel Nacional ou no Sandy’s com um, ou viajava para a América do Norte ou Europa com outro. Eles também não tinham ciúmes um do outro. Coisa estranha para aqueles anos 70. Ou não! Mas como ficar com ciúmes dela, que era de um e de todos, louca de amor, que tinha a mágica entre as pernas?
Confessou-me que ficou doidona uma única vez – não falou de outras experiências. Foi com o peiote, cacto sagrado usado por índios da América do Norte, numa viagem com o italiano. Disse que a experiência foi boa, viu-se até a cavalgar um gigantesco pássaro-fóssil, mas que amar sem nada na cabeça era bem melhor. “A gente sente mais o pulsar do amor”.
Ela era uma poeta do amor. Fazia não amor, mas poesia com seus ais e uis, seus pelos pelo corpo, seu suor. Tinha um sorriso alegre. Era um sorriso que as invejosas chamavam de maligno. Mas que os homens achavam cativante. Nunca me disse ter lido ou saber quem era Olavo Bilac, Baudelaire ou T.S. Elliot. Nem Jorge Amado ou Fernando Sabino. Gostava de Nelson Gonçalves, que ouvia seu pai cantar. Vivera em grupo, mas isoladamente.
Para ela, pornografia é gostoso e sexo é bom. É como suco de maracujá e sorvete, disse. O sexo move as pessoas de forma que nenhuma outra coisa conseguiria. Ela gostava de fazer amor ciscando, cultivava esta mania de bordejar o corpo, um passarinho. Com aquele lado provocador, de arriscar, de flertar, de assumir posições de vanguarda. Confessou-me que foi feliz com alguns homens. Com outros, foi mulher.
Em casa, gostava de usar saia curta e camiseta branca, sempre molhada. Principalmente se estivessem ela e ele, sozinhos.
Seu jeito de amar, acredito, subverteu tudo que era feito até então e influenciou outras mulheres da sua terra. E olha que ela não era puta. Era apenas mulher.
Apaixonada por fazer amor.
Não sexo.
Não história.
Estórias.
Mas as nuvens escuras sempre aparecem sobre o céu das cidades. E um dia apareceram para ela.
E até o tapete, sem ela, voou...
Lá longe, toca “Solitude”... E parece que a cidade canta: Nesta solidão/
Imploro/
Para ver você/
E viver em paz...

Havia um sonho em cada estrada...

Olhando os livros na vitrine de Miguel de seu Ducho, eis a surpresa de encontrar o CD de Luis Guedes & Thomas Roth. Com seus dois vinis. Coisa rara! Eu ainda os tenho (os elepês) guardado em casa e no coração. Afinal, havia um sonho em cada estrela e, em cada rua, uma lua, como nos lembrava Luiz Guedes em “Bons Tempos”, uma das suas parcerias mais tristes com Thomas Roth. Naquele tempo, em que a doença ainda não havia manifestado em Lulu, ele cantava amigos todo tempo, pois havia tempo e havia amigos. Eram outros os perigos.
Ser livre era sagrado, era direito, era um jogo seguro. Mas tudo tem seu tempo certo. Carlos Drummond de Andrade já teria escrito que havia jardins, havia manhãs naquele tempo. Lembro quando o montes-clarense Luis Guedes, Lulu, voltou para sua cidade quando já não havia jardins, manhãs, lua em cada rua. Doente, fazia seu tratamento calado. O primo Beto chegou a se manifestar em um show solidário, para o então solitário Lulu. Os tempos dos “Heremitas” havia passado. O cine teatro Fátima tinha virado casa de jogo, depois casas Bahia. As tardes de domingo, no Automóvel Clube, haviam ficado para outro tempo.
Foi assim que Lulu virou estrela no céu, como dizem os índios quando alguém morre. Lembro ainda hoje: desencantou-se numa terça-feira, em Belo Horizonte. Um dia depois, na sua terra, onde seu corpo passou as últimas horas na galeria que leva o nome do seu tio, Godofredo Guedes, descia ao jazigo, sem o som dos “Heremitas”. Era enterrado quase despercebido pela cidade que, lá fora, vira, pouco a pouco, metrópole, e não tem tempo para os filhos teus que não fogem a luta. E o povo, pouco a pouco, vai esquecendo... Mas havia um sonho em cada estrada.
Por meses a fio, em 1981, uma canção não desgrudava dos rádios. Era “Canção de Verão”, uma celebração da estação quente que estava por vir e, sobretudo, uma apologia à vida, tornada famosa pelo Roupa Nova. Foi a primeira vez que Luiz Guedes - com a parceira de Thomas Roth - saboreou a fama. “Canção de Verão” tornou-se uma das músicas mais executadas do país, com aquele refrão instantâneamente reconhecível, aquela melodia correta e uma letra direta, arrematando de maneira irreversível a popularização da dupla de compositores. Esse processo já havia sido iniciado por “Nova Estação”, música com a qual concorreu ao MPB-80 e que foi a de maior execução pós-festival. Acabou sendo regravada por Elis Regina. Eles também alimentaram Emílio Santiago, que gravou “Mais uma Vez”.
Mas estancava ali, naquele sol de verão de 1981, o momento em que Lulu e Roth utilizavam terceiros como veículo de sua música costurada cuidadosamente com melodias e harmonias ricas, de letra simples na medida exata, de vocalises borjudos. Faltava à dupla gravar um disco seu, onde expusessem o terreno de ação da arte que emprestavam a outros em sua plenitude.
“Canto Matinal” foi o compacto de 1981, com arranjo de Wagner Tiso, e “Como Nunca”, que recebeu o arranjo de Cláudio Burnier. Esta havia sido gravada no álbum “Sol de Primavera”, pelo primo Beto Guedes. Mas o compacto não detonou satisfatoriamente a curiosidade do público. Lulu e Roth já eram, de fato e direito, prediletos dos intérpretes e, como tal, ressentiam-se da falta de exposição maior ao público. Por isso, chegou “Extra”, que remediou o problema. Foi um disco onde ficou bem clara a expertise da dupla para garimpar melodias tão ricas quanto suas harmonias, ao mesmo tempo fáceis de guardar e de nuances que se alteram entre o dramático, o romântico e o celebratório.
Dele, outros sonhos se passaram. E num país em que, geralmente, os compositores excepcionais costumam virar intérpretes medíocres, Luis Guedes e Thomas Roth foram gemas raras, odaras. O que, a bem da verdade, não chega a ser uma qualidade inesperada, traçados os precedentes da dupla: a teimosia e a incansabilidade sempre foram suas características.
Mas passou-se o tempo, como o tempo sempre passa. No início da década de 1990, Lulu retornou à Montes Claros. Da infância, a lembrança da ZYD-7, da qual era ouvinte assíduo. Agora, novas emissoras no ar, novas tendências, o progresso.
Lulu se acostumou à música desde cedo, fosse ela proveniente da imponente presença de Luiz Gonzaga - que o pai o levou para ver ao vivo, certa vez - das incontáveis serenatas que presenciou, vendo os regionais amadores em que tocavam o pai e o tio, ou das festas de rua, como folias de rei, quadrilhas juninas e festas de agosto. Ele adorava música de acordeon.
Porém, só bem mais tarde consideraria uma carreira em música, no momento em que conheceu Adson, garoto como ele, que dividia seus dias entre o trabalho numa mercearia e uma incurável paixão pelos Beatles. Foi o estopim de tudo. Os dois tornaram-se inseparáveis e a amizade gerou mais de 100 músicas, todas inéditas. Também foi a conta para que Lulu comprasse uma guitarra Phelpa e alistasse no grupo de baile “Os Heremitas”, especialistas em covers de sucessos do grupo inglês - quem mais? - Herman’s Hermits. Inchava o ego de Lulu, em tenros 16 anos, ver multidões ovacionando sua versão de “Listen, People”.
Pressionado pela família, viu-se obrigado a tentar o vestibular - primeiro, para Direito, depois, para Administração de Empresas - em São Paulo, cidade que essa parte da família Guedes havia adotado ao deixa Belo Horizonte para acompanhar a filha mais velha, universitária.
Distante de Adson, o único a seduzí-lo para longe das universidades e de volta à música era o primo Beto que, ainda assim, permanecera em Beagá. Foi quando, empregado a contragosto numa empresa de mudanças, Lulu conheceu Thomas Roth, filho de pais alemães, carioca transplantado ainda bebê para a terra da garoa. Mas o primeiro disco da dupla - ou mesmo uma apresentação conjunta - custou acontecer.
Thomas chegou primeiro ao estúdio, gravando uma faixa do álbum Mambembe, do qual participaram ainda os novatos Ednardo, Amelinha, Belchior e Cirino. Depois, veio “Manchetes” e “Quero”. Elis Regina ouviu esta última, gostou e a incluiu no antológico “Falso Brilhante”. Como dupla, o início foi no palco do MPB-80, com “Nova Estação”. Daí pra cá, você já sabe...

Há um ladrão na janela, onde antes estava Carolina

Ainda estou tentando desvendar o que é Montes Claros, minha terra.
Primeiro, é necessário saber que Montes Claros são muitas. Dentre uma.
Só de aniversário, comemora três no ano:
12 de Abril, quando Antônio Gonçalves Figueira obteve por Alvará a sesmaria da fazenda dos Montes Claros. Já fizemos 300 anos.
3 de Julho, quando a Vila de Montes Claros de Formigas foi elevada à categoria de Cidade. Já passamos dos 150 anos.
E 16 de Outubro, quando foi instalada a Vila de Montes Claros de Formigas, e emancipada administrativa e politicamente, ganhando vida própria. Os 175 anos ficaram para trás.
Segundo, é necessário dizer que Montes Claros é a melhor cidade do mundo. Depois, bem depois mesmo, vem Paris. E aí sim, Janaúba. Como não disse Otto Lara Rezende (mas poderia), Montes Claros está onde sempre esteve.
Nem tanto tempo assim se passou, e as coisas mudaram tanto por aqui. No Todos os Santos mesmo, tinha uma várzea. Uma não, várias várzeas, já que os santos são tantos. E o rio Pai João, onde nadei com amigos e meninos piaba, já não é mais Pai. Nem... rio!
Onde hoje é a Unimontes, quantas vezes atolei meu pé na lama... Quantas vezes nadamos naquela piscina da antiga fazenda de Dr. Santos, onde anos depois os japoneses Manoel e Joaquim fizeram, ao lado, o Categute. E a água acumulada ali, era de chuva. Tínhamos campinhos de futebol naquelas várzeas do hoje Todos os Santos. Perto da casa de José Mário de Araújo - comerciante de casos e causos vários -, ficava o campinho oficial, que só acabou porque foi construído o Orbis Clube. Por ali, além da meninada, passaram alguns mais velhos novos: Carlão, Zé Quintiliano, Carlos Curiango, Rays, Zé César Vasconcelos, Marquinho Loiro, Márcio Hiram, Jerônimo da Padaria. E os meninos de seu Mário. Todos cheiinhos, como ele. O DNH estava na cara. Quantos gols fizeram ali. Quantas peladas, quantos dedões quebrados. Quantas bicudas dadas em tantas bolas.
Eu não sou um cara tão antigo assim não. Posso até parecer. Ta certo, era final dos anos de 1960. O campo dos seminaristas, na Irmã Beata, ainda era campo nosso, embora diminuindo pouco a pouco. Se as chuvas enchessem a piscina do seminário, na Coronel Prates, estávamos lá a nadar, sem importar em pegar doença ou não. Se o tempo não era de chuva, a piscina estava seca ou com água verde demais, era então hora de futebol sobre os paralelepípedos da Coronel Prates. Braço no gesso, dente partido, joelho ralado, cabeça lascada... dedão sangramdo! Êta coisa boa era ser criança naquele tempo!
Hoje, ficam enfurnados em casa, com seus playstations, nintendo, buscas na internet. Não sobem no pé de manga, não chupam a manga e deixa escorrer pelo canto da boca, nem andam de bicicleta por medo.
Já gostei muito de passear a pé pela cidade, alheio a carros, pressa ou medo de assalto. Andava a pé ou de bicicleta, andava pelo São Judas, São João, pela Malhada. Ia pro lado do parque Milton Prates. Acampava onde hoje está o parque do Sapucaia. A gente seguia uma trilha, subia pelo rio, tomava banho de cachoeira. É, existia cachoeira naquele tempo. Existia a ‘“Lajinha”, “Melo”, “Carrapatos”, onde um ou outro ainda levava uma menina da zona.
Existiam zonas naquele tempo, com donas amantes e mal amadas. Quanta gente não teve sua iniciação naquelas mulheres, algumas gordas, de peitos e quadris largos, que mexiam e até fingiam gozar. Ainda era tempo, naquele tempo, de ir para o Colégio São José passando ao lado da zona da Rua Padre Augusto. Os motores da Cemig trabalham a óleo diesel. E tinha gente que via fantasmas, ao meio-dia, andando pelo local onde antes existia um cemitério.
Como Montes Claros já teve zona. E putas!
O Wanderlino Arruda lembra, bem lembrado, que, nos anos do cassino, do Clube Minas Gerais, eram 3.000 as meninas. Fichadas. O tempo da ficha passou. Mas elas continuaram existindo. Hoje, devem ser bem mais. Só que, a maioria, vive ao nosso lado, no dia-a-dia. Poucas são aquelas que ainda ficam na zona. São as modernidades...
Quando a cidade completou seus 150 (175? 300?) anos da cidade, houve lista de homenagem. Mas faltou a lista das 150 putas. Ou donas de puteiros. Ali poderiam estar Leobina, Etelvina, Maria de Belo, Maria Cudeferro.
Também Anália, Sara Batalhão, Rosinha, Verona, Petró (Petrolina), Roxa (dona Eudóxia), Joana do Esplanada, Jésus e Maria Comodoro.
Na lista não podiam faltar Zinha, Belinha Gorda, Irene, Vera da Vila Ipiranga, Edna, Almira, Rita do Ceará, Terezinha do Manchester, Joana e Kássia Loura.
E Maria Flor de Maio, com sua ternura? E Tiana, generosa, inteligente, articulada? Abrindo caminho, ainda hoje, para a puta cidadã.
Foram esquecidas naquele ano, de tantas comemorações. Tão esquecidas que, dia destes, no gabinete do prefeito, durante a solenidade dos 175 anos da cidade, o escritor Wanderlino Arruda lembrou do entorno da praça da estação ferroviária. Lembrou de tudo, da cultura, da vivência, da sapiência das pessoas. Menos das putas que ali transitam diariamente. E ainda passam...
Tantas e tontas, frequentam os bares da região e até fazem ponto no forrozão às quintas e sábados. Os antigos hotéis ali viraram o quê? Motéis? Precisam sobreviver...
A escritora Raquel Mendonça, feminista, não deve gostar muito quando se toca nisso. Mas deve gostar quando se defende a mulher, seja qual a profissão escolhida. Sim, Raquel, a cidade continua tendo suas putas. De preferência, são poucas. Embora tantas e tontas. Reconhecidas pelo Ministério do Trabalho. No Censo do IBGE de 2010, com certeza, foram contadas. Saberemos quantas putas temos. Embora muitas, principalmente estas que andam ao nosso lado, queiram responder e vão dizer que são de outra profissão. E puta, Raquel, é uma das palavras mais sonoras, vigorosas, malditas e belas da nossa língua. O Houaiss mostra que ela é rica em sinônimos – 127 ao todo. Lembra Roberto Pompeu de Toledo, que ela reina com autoridade para expressar o que expressa.
Por que não homenageá-las nesta Montes Claros que perde o vínculo com seu passado? Nesses novos tempos que começam?
Bom lembrar que ser mulher “da vida” é bem melhor do que ser mulher “da morte”. Ainda mais hoje, que nossa cidade não se tem lugar nem para amarrar nosso burro! Montes Claros paga alto o preço de sua expansão. Inchada, virou a cidade dos desafios. Nos anos 1960, éramos pouco mais 50 mil almas. Hoje, estamos chegando aos 400 mil. Um assombro para quem, como eu, relembra a pacata cidade com bate-papos animados nas calçadas, serestas sob sacadas, gente subindo e descendo a Dr. Santos nas noites que continuam cada vez mais quentes de primavera. E nenhuma favela, é bom lembrar.
Como mostra a Gal Bernardo naquela apresentação que me mandou, a pé ou de bicicleta, íamos à casa dos nossos amigos, mesmo que morassem distantes de nossa casa. Entrávamos sem bater e íamos brincar. Faz isso hoje! A vida real é diferente nos tempos de agora. Na vida real de agora, quando muito, há um assassino triste e doente de idolatria que espera nas sombras o objeto do seu amor torto para lhe dar uma dúbia e dolorosa morte.
Há um traficante na esquina, onde deveria haver um grupo de amigos e um violão.
Há um ladrão na janela, onde antes estava Carolina, e ainda se via a banda passar.
Onde Peter Pan saía voando, ouve-se um tiro, um grito, um desabafo.
Há um choro incontido, embora poucos percebam.
Às vezes é patético o outono de uma cidade. Embora saibamos que cidades não são como nós. Não têm outonos.
Às vezes é bonito. A sobrevivência é uma arte, e temos quem amá-la.
Qualquer que seja o pesadelo que tenhamos, nele sempre representamos um papel, sempre somos protagonistas, somos alguém.
Durante a noite, o deserdado triunfa.
Se os maus sonhos fossem suprimidos, haveria revolução em série.
O mundo não é feito de novo. Pensar nisso como uma promessa é o que alimenta o espírito e faz nascer o futuro. Mas a ironia é que a gente só vê isso quando já está muito longe.

Lendas (lendas?) urbanas ou não

Meu filho Junior é que conta a história. Nos banheiros das escolas por onde passou – agora está na Escola Estadual Gonçalves Chaves -, mora uma fantasma. É conhecida pelos alunos de “loira do banheiro”.
Para chamá-la, existem várias maneiras. Uma delas é levar para o banheiro um fio de cabelo loiro, jogá-lo no vaso e dar três descargas.
Outra é dar três descargas, três chutes no vaso, e falar três palavrões. Mas tem que ser palavrão daqueles grandes. Ai ela aparece.
Às vezes mata as crianças. Às vezes não aparece. E outras vezes, ainda, os meninos mentem que a viram e saíram correndo.
Uma vez, sua turma do Gonça queria ver se existia mesmo a loira do banheiro. Fizeram o ritual, mas seu amigo Darley foi primeiro e saiu correndo, antes de terminar. Ninguém – e eram sete – ficou pra ver a moça. Se é que ela apareceu...
Isto, em pleno centro de Montes Claros.
Pior é a loira da internet. Conta-se que após um jovem baixar um arquivo e começar a conversar com a tal loira, ela manifestou todo o seu mal e ele não conseguiu parar de conversar com a tal moça. Acredito que muitas crianças e adolescente que conhecem a lenda ficaram com medo, e pensam aionda hoje duas vezes antes de começar a conversar com qualquer garota na internet. Principalmente se ela for loira…
Este é um dos delírios urbanos que acometem, vez por outra, a nossa imaginação.
Parece não ter sido à toa o porque de Franz Kafka se basear em parábolas, lendas e mitos para escrever narrativas em que aparecia o absurdo e as armadilhas do poder. As lendas, urbanas ou não, por mais simples que pareçam, contém uma carga de contundência e denúncia, que a reflexão crítica às vezes mal consegue roçar.
Ruth Tupinambá conta, no livro “Montes Claros Era Assim”, que as crianças pintavam e faziam traquinagens durante o dia e a mãe sempre dizia que, à noite, elas veriam o lobisomem. “Ele sempre aparece aos meninos mal criados e desobedientes, vocês vão ver!” Na hora de dormir, o arrependimento e o remorso vinham quando se lembravam da “profecia”. Para dormir, o melhor era cobrir até a cabeça com o cobertor, e ficar suando as bicas. O coração apressado, o silêncio da noite... Qualquer barulho era assombração: alma de outro mundo, lobisomem, mula-sem-cabeça. Será Ventura - aquele mendigo de dentes amarelos e grandes -, que virava lobisomem?
De tempos em tempos, uma lenda urbana aparece. Como uma cobra escondida numa inocente piscina de bolinhas que mordeu uma criança, que ninguém sabe quem é e nenhum hospital recebeu. O fantasma do guarda noturno que aparece, ainda hoje, no Colégio São José, olhando se as portas estão trancadas. As balinhas com drogas distribuídas para as crianças nas escolas. Ou aquela do amigo da minha sobrinha que falou que tinha um carro preto no bairro roubando crianças. Pior, ele garantiu que isso tinha acontecido com o filho de um vizinho dele...
A internet e até mesmo a imprensa ajudam a disseminar estas lendas. Por aqui, tivemos a mulher de sete metros, que assustava os moradores no final da linha de lotação do Morada do Parque. A estória de João Carlos Queiroz é até hoje vivida no “Festival Folclórico”, durante as festas de agosto.
Em Janaúba, eu e o jornalista Benjamin Oliveira Junior descobrimos a história de uma serpente que passou perto de uma casa, no distante ano da grande seca, 1939. Com depoimentos de moradores, histórias de pescadores e fatos reais, foi criado o monstro do Bico da Pedra, uma espécie de primo distante do monstro do Lago Ness, da Escócia. Pois depois que a história foi publicada no jornal Estado de Minas, muita gente jura que viu o danado. Tem gente que faz campana no lago até hoje.
Na subida da serra de Francisco Sá existia a moça de branco, que deve ter migrado da subida da serra de Montes Claros para Bocaiuva.
Em 1938, os Estados Unidos entraram em pânico ao ouvir no rádio que a Terra estava sendo invadida por aliens. Mas era só o cineasta Orson Welles lendo um trecho do romance “A Guerra dos Mundos”, de H.G.Wells.
Discos prateados rodopiando pelo cosmo, luzes alucinadas, texturas estranhas. É perfeitamente racional supor que há vida inteligente fora da Terra. Ainda não há provas. Erich Von D’aniken, autor do “Eram os Deuses Astronautas?”, afirmou que os extraterrestres já estiveram no nosso mundo. E há evidências. Uma delas seriam as pirâmides do Egito.
Nossa história é cheia de lendas, urbanas ou não. Tem o Caipora (ou Curupira, Pai do Mato, Mãe do Mato, Caiçara, Caapora, Anhanga). Trata-se de um anão de cabelos vermelhos com pelo e dentes verdes. Como protetor das árvores e dos animais, costuma punir o os agressores da natureza e o caçador que mate por prazer. Está na hora da turma do S.O.S. Sapucaia (Serra do Mel) chamá-lo.
O Boi Tatá é um monstro com olhos de fogo, enormes. De dia é quase cego, à noite vê tudo. Diz a lenda que o Boitatá era uma espécie de cobra e foi o único sobrevivente de um grande dilúvio que cobriu a terra.
A Mula sem cabeça já apareceu diversas vezes. Está presente até na história de Janaúba. Nos pequenos povoados ou cidades, onde existam casas rodeando uma igreja, em noites escuras, pode haver aparições da Mula-Sem-Cabeça. Também se alguém passar correndo diante de uma cruz à meia-noite, ela aparece. Dizem que é uma mulher que namorou um padre e foi amaldiçoada. Toda passagem de quinta para sexta feira ela vai numa encruzilhada e ali se transforma na besta.
A Iara, que acabou comendo Macunaíma, foi registrada na história pelos cronistas dos séculos XVI e XVII. No princípio, o personagem era masculino e chamava-se Ipupiara, homem peixe que devorava pescadores e os levava para o fundo do rio. No século XVIII, Ipupiara vira a sedutora sereia Uiara ou Iara. Todo pescador brasileiro, de água doce ou salgada, conta histórias de moços que cederam aos encantos da bela Uiara e terminaram afogados de paixão. Diz o secretário de Cultura de Montes Claros, Ildeu Braúna, estudioso do Rio São Francisco, que quando a mãe das águas canta, hipnotiza os pescadores.
A cobra grande é uma das mais conhecidas lendas do folclore amazônico. Numa tribo indígena uma índia, grávida da Boiúna (Cobra-grande, Sucuri), deu à luz a duas crianças gêmeas que na verdade eram cobras. Para ficar livre dos filhos, a mãe jogou as duas crianças no rio. E lá no rio eles, como cobras, se criaram.
A lenda da Vitória Régia era contada pelos pajés tupis-guaranis, Dizem que no começo do mundo, toda vez que a Lua se escondia no horizonte, parecendo descer por trás das serras, ia viver com suas virgens prediletas. Diziam ainda que se a Lua gostava de uma jovem, a transformava em estrela do Céu.
Já o Papa Figo, ao contrário dos outros mitos, não tem aparência extraordinária. Parece mais com uma pessoa comum. Outras vezes, pode parecer como um velho esquisito que carrega um grande saco às costas. Na verdade, ele mesmo pouco aparece. Prefere mandar seus ajudantes em busca de suas vítimas. Os ajudantes por sua vez, usam de todos os artifícios para atrair as vítimas, todas as crianças. Eles agem em qualquer lugar público ou em portas de escolas, parques, ou mesmo locais desertos. Depois de atrair as vítimas, estas são levadas para o verdadeiro Papa-Figo, um sujeito estranho, que sofre de uma doença rara e sem cura. Diz que para aliviar os sintomas dessa terrível doença ou maldição, o Papa-Figo, precisa se alimentar do fígado de uma criança.
Lendas existem aos montões: a do ladrão de órgãos, a boneca enfeitiçada, a fada dos dentes, carona do além, a menina das flores, a loira da garagem (que deve ser parente da loira do banheiro e da internet).
No cemitério Bonfim, muita gente ainda tem medo de certa quadra, onde guarda noturno, hoje aposentado, dizia ouvir vozes. Mas nunca via pessoas conversando. Ele não sabe explicar o fato. Lembra que da última vez que ouviu vozes, ao invés de fazer uma oração, preferiu sair correndo de lá.
Cemitério tem obras de artes, é um lugar para se andar e pensar em paz, mas também pode trazer medo e lembranças assustadoras.
Como os seres humanos, as lendas urbanas nascem, crescem, sofrem mutações, se reproduzem e morrem. Mas muitas vezes ressuscitam.
Final, o misticismo está em tudo. A vida é um milagre. E nós estamos cercados por milagres...

Respeitável público, o palhaço Frajolla (e Mariola)

A fábrica de inspiração do palhaço Frajolla (e Mariola) não para. Ontem mesmo, estava gravando um DVD, pelas ruas de Grão-Mogol. Hoje, se apresenta na festa de uma cidade ribeirinha do Jequitinhonha, ou ali mesmo, perto de Curvelo, onde mora atualmente. Amanhã, (quem sabe?) nos dá a graça e a honra de vê-lo pelas ruas montesclalindas, acompanhado pelo homem da perna de pau, com aquele mundaréu de crianças atrás, um verdadeiro mar de alegria. Este é Frajolla, um palhaço que doença alguma consegue deixar na cama.
Há algum tempo nosso papo é virtual, através do MSN ou do Facebook. Frajolla e Mariola estão morando em Curvelo, ali no centro de Minas. Talvez para ficar perto de tudo. Ou longe. Sei lá.
Me lembro bem dos lançamentos do seus discos por aqui, de suas viagens e shows nas cidades deste Grande Norte. Escuto sempre suas músicas. São tantos os CDs, mas guardo bem guardado um LP, que escuto no velho som. Seus discos sempre são lançados com algo diferente. "Cartilha Encantada", por exemplo, foi apresentado ao respeitável público junto com gincanas. Tratava-se de um projeto de parceria entre alunos de educação física da Funorte, Frajolla e as escolas da cidade e da região.
O disco, que vinha dentro de uma cartilha, trazia, além das letras das canções, jogos de palavras cruzadas, adivinhações e desenhos "para a criançada brincar, colorir e se divertir". Coisa mais do que certa para este professor que tanto gosta de crianças.
Como não se maravilhar com ‘Quintal da Fantasia’, ‘Maria Tigela’, ‘A Arainha’, ‘No Caminho da Roça’, ‘Cadê’, ‘Samba Mais Eu’, ‘A Velha Debaixo da Cama’, ‘Monjolo’ (parceria com Tom Andrade), ‘Água de Beber’ (Pedro Boi). Mas isto foi em 2004/2005.
Seu ultimo trabalho (além de um lindo DVD) que conhecia era “Bom Dia, Escola”. Frajolla fez este CD pensando nos adultos, mas nunca produziu algo tão bom para a meninada. Encaixa direitinho em qualquer coração, tanto por músicas como ‘Casinha de Bambuê’ ou ‘O Sapo Não lava o Pé’ – minha predileta. Só podia! – mas pelo formato diferente que ele dá a todas elas.
No CD existem ainda coisas lindas, ‘A do lê ta’, ‘Dona Coruja’, ‘Rebola Bola’, ‘Engenho Novo’, ‘Como vai amiguinho’, ‘Dedinhos’, ‘A formiguinha’ e até ‘ Prenda Minha’ e ‘Onde está a Margarida’. Totóia e Juca não paravam de dançar, ao colocar o disco para rodar. Às vezes, até enche, pois não querem que eu ouça outra coisa. Coisas de criança, quando ainda eram crianças. Hoje, Totóia está pra lá dos 15, Juca com seus 10. Nem deveriam interessar tanto.
Qual o que.
Muito tempo já se passou depois de ”Cartilha Encantada” e “Bom Dia, Escola”.
Dia destes recebo telefonema do compadre Luis Carlos Nunes. Trouxe um presente pra mim de Curvelo. Vou buscar, e nem abro em sua casa. Ele não disse o que se tratava aquela caixa de papelão.
Em casa, a surpresa: numa caixa/estojo, “Brincar de Quê?”, com os discos mais recentes de Frajolla e Mariola.
“Brincar de Quê?” traz seis discos, quatro CDs e dois DVDs. Seis de uma vez só!
Curvelo fez bem à dupla, que continua fazendo shows todos os finais de semana em cidades tão dispares como Entre Rios, Abaeté, Pompéu e Salinas.
A música de Frajolla e Mariola é sempre cheia de humor. Além de trazer todo um folclore, pois eles, antes de serem músicos de crianças, são pesquisadores. E que coisa mais linda é ver estas figuras avançando contra a corrente, resgatando cantigas de roda com aquele toque especial. É, também, a oportunidade dos pais se divertirem a valer numa demonstração de que nunca deixaram morrer a criança que existe em cada um de nós. “Um autêntico show musical com brincadeiras que revive a matinê nos picadeiros debaixo da lona circense”.
Por onde passa, Frajolla e Mariola deixam marcas do que é bom como diversão sadia, levando a todos os cantos a alegria de viver que pode ser vista nos olhos de cada menino ou menina de todas as idades. Apresentam em seus show músicas e brincadeiras com a total participação da platéia, levando a alegria e ao delírio aos que buscam uma diversão pura como descanso e descontração.
Resgatam o universo das cantigas de roda do interior do Brasil, recriam aquele espírito circense que fez a alegria das gerações que antecederam o advento da televisão, tentando justamente ressuscitar essa magia; existem mais tesouros para as nossas crianças que a hipnose da “telinha”. Nestes tesouros pulsa a alma do verdadeiro Brasil, tão esquecido em nossas imensas cidades.
Me rendi as travessuras do palhaço Frajolla outra vez.
Ainda mais no formato DVD, em que recria suas cantigas de hoje e sempre.
E indico para crianças, mas como mora sempre uma dentro de nós, o bom mesmo é a gente sentar na sala, ligar a TV, comer pipoca, tomar guaraná e curtir, na maior inocência e cara séria, junto com os baixinhos, faixa por faixa.
Tudo que ele mostra neste estojo, surpreende.
Pelas imagens, pelas músicas e pela cara dos baixinhos quando acaba: querem repetir tudo de novo.
Frajola é um palhaço diferente.
Interessado em levar cultura para baixinhos e altinhos, entrou de vez na linha folclórica, trazendo o melhor a tona.
Garimpa minas virgens do Norte e Jequitinhonha, e é a fonte, cabeceira e nascente de suas criações.
Não se poupa.
“Hoje Tem Espetáculo” está aí, para não me deixar mentir. “Brincar de Quê?”, também.
O restante é fruto da busca, do garimpo, sozinho, na labuta dos anos.
As belas – e bota belas aí – imagens mostram como o palhaço é sensível. Como o palhaço é espiritual. Como Deus é grande!
Todos chutando a bola da vida no gol da imaginação, seja dono da rua, capitão do mato, que invente o brinquedo, o arco-íris e coisa e tal.
Tinha até esquecido de como cria este Frajolla.
Espero, agora, que ele, novamente, volte a nossa montesclalinda cidade e grave, em nossas ruas - que tal a praça da Matriz ou a parte velha da cidade? - uma das canções do seu próximo DVD.
Afinal, a gente fica com orgulho quando vê produções tão boas, tão largadamente bem feitas, tão cheias de curiosidade, tão bonitas e gostosas, tão... Nem tenho mais nome para tal coisa, tão bem feita que é! A vontade é de não parar de escutar nunca. Não parar de assistir, nunca.
E que venha mais, pois o que é bom, é para vir de montão. Frajolla com Mariola sabem o que é tão bom para o coração deste velho montes-clarense.
Vão, Frajolla e Mariola (e Maria Bulaxa). Continuem a percorrer as ruas das cidades lá de fora.
Mas não se esqueçam da gente!

E.T. de pé de serra

Beira Mar Novo, fui só eu é quem cantei
Ô Beira mar adeus dona, adeus riacho de areia.

Eu não moro mais aqui, nem aqui quero morar, ô beira mar adeus dona, adeus riacho de areia
Moro na casca da lima, no caroço do juá, ô beira mar, adeus dona, adeus riacho de areia
Adeus adeus toma Deus, que eu já vou me embora

O folder da audição da Musicalização II distribuído naquela Quarta de Finados, pelo Conservatório de Música Lorenzo Fernândez, dizia que Encantos de Minas, o show a ser apresentado pelos nossos filhos, iria despertar em cada um de nós a riqueza de nossa terra, nossa gente, nossa arte.
Em mim, despertou mais do que uma simples viagem pelo mundo musical mineiro poderia.
Canções de Juquita Queiroz, Marcelo Godoy, Cori Gonzaga, Milton Nascimento e Maria Lira Marques, principalmente ela, nos carregou por outros tempos.
Digo Maria Lira porque seu nome não constava do folder. Mas é dela e do Coral de Trovadores do Vale (e do Frei Chico (Francisco Van Der Poel) a adaptação folclórica de Riacho de Areia, mais conhecida como “Canto Beira Mar”, que nosso grande Luis de Paula escutava, ainda menino, quase cem anos atrás, lá em Várzea da Palma.
Conheci “Riacho de Areia” numa tarde do outono de 1983, quando por aqui apareceu o caminhador Dércio Marques, pessoinha que ama a liberdade.
Vinte e tantos anos já se passaram. Era uma tarde gostosa, como são gostosas as tardes de outono em nossa cidade. Ele todo de branco, vindo de Uberlândia, indo para Vitória da Conquista. Pousou aqui como uma borboleta, não sei por que me procurou (talvez por estar na Rádio Montes Claros, a primeira FM da cidade), não o conhecia direito, apenas da sua apresentação na televisão defendendo música de Elomar num festival da Globo. E saímos pela cidade. Não houve show, não houve nada, apenas papo e canções ao vento, na tarde de outono de 1983, no barzinho Stalo, do Celsinho, lá no bairro do Melo. E por lá ficamos entrando a noite, entre uma canção e outra, entre um papo e outro, entre um cigarro e outro. Veio a madrugada e ele se foi...

Eu morava no fundo d’água e não sei quando voltarei, eu sou canoeiro, vou remando minha canoa, lá no poço do pesqueiro, ô beira mar, adeus dona, adeus riacho de areia

O cantor, compositor, instrumentista, pesquisador da cultura popular, produtor - de discos de Elomar ou de Diana Pequeno, aqueles primeiros, que eram excelente -, Dercio é figura importantíssima da cultura brasileira, com atuação sólida nos terrenos da pesquisa e do resgate das culturas interioranas, das linguagens da viola, dos cantos de trabalho e devoção.
Mesmo não tendo alcançado grandes sucessos de massa, tornou-se figura de referência para estudiosos da cultura popular e para os que a admiram.
Seus discos são independentes e permanecem combinando, como inevitavelmente seria, as questões ecológicas com aquelas que dizem respeito à diversidade das expressões culturais brasileiras.
Violeiro e cantador mineiro, viaja ainda hoje por todo o Brasil apresentando seu trabalho e coletando material sobre a cultura popular brasileira, como já fazia nas décadas de 60 e 70, quando viajou pela América Latina divulgando músicas brasileiras.
Seu primeiro disco foi lançado em 1977, pelo selo Marcus Pereira, com o título de “Terra, vento, caminho”, e relançado em CD em 2000 pela Kuarup. Em 1979, lançou pela Copacabana, "Canto forte - Coro da primavera".
Estou escutando agora, seis da manhã dessa sexta-feira - solzinho tímido de outono batendo na janela, canto do Bem-te-vi, de pássaros diversos, e do galo, este, atrasado -, o Long Player (isso mesmo, o antigo LP) de Fulejo. E viajando pelo nosso universo que está acabando.
Sigo nesta manhã, relembrando histórias de Lamartine Babo (Serra da Boa Esperança), coisas simples de Elpídio dos Santos (Casinha Branca - que o Grupo Raízes, com Ângela, marcou tão bem -, e Ranchinho Brasileiro), Elomar Figueira de Melo (Pinhão na Amarração) e César Teixeira (Namorada do Cangaço, também gravada por Tino Gomes no seu terceiro LP). Na simplicidade e gostosura da voz e sons que o Dercio Marques nos proporciona. Só quem conhece seu trabalho chega a tranquilidade de dizer que a nossa música vai muito bem, obrigado. Apesar de tudo.

Vô desceno rio abaixo, num canoa furada, ô beira mar, adeus dona, adeus riacho de areia
Arriscando minha vida, pruma coisinha de nada, ô beira mar adeus dona, adeus riacho de areia
Adeus adeus, toma Deus, que eu já vou me embora...

Julinho Bittencourt diz que Dercio Marques é uma lenda para poucos. Acerta em cheio. É um dos artistas mais inusitados deste país tão criativo. Viaja por todo o canto onde houver um canto para aprender ou mostrar. É uma verdadeira enciclopédia viva da cultura popular brasileira. Quando resolve gravar, chama todos os amigos que estiverem ao alcance, incluindo aí as crianças e os passarinhos.
Faz festas do povo e com o povo, não simplesmente discos. É um trovador errante, com uma visão própria de construção de carreira. Não tem nenhum sucesso de rádio ou televisão. Mas lá se vão muitos anos deste mundão de Meu Deus que ele funciona como um pulmão que ajuda a soprar canções direto de sua nascente. Tem uma voz belíssima que sempre se soma as festas e reisados. Canta com a nossa voz, a voz da nossa gente.
Dércio tem uma porção de discos gravados, sempre por produtoras independentes ou coisa parecida. Não grava com regularidade, o que torna cada lançamento seu um acontecimento para os interessados, que, levando-se em conta o mercado fonográfico, não são poucos e estão espalhados por todo canto onde ele costuma passar.
Grande interprete de Elomar, grande interprete da música raiz, Dercio fez tudo e muito fará. Tem desde disco infantil (Anjos da Terra e Monjolear), passando pelo meu predileto (Fulejo), indo ao magnífico “Segredos Vegetais” e “Cantigas de Abraçar” que, como ele próprio diz, é um almanaque musical (conta com participações especiais de Elomar, Xangai, João Omar, Saulo Laranjeira, Renato Teixeira, Doroty Marques e outros tantos interpretes e compositores). Em 1996 foi indicado para o prêmio Sharp de Melhor Disco Infantil com "Monjolear", gravado em Uberlândia, com 240 crianças. Espelho d'Água; Sons e Sentimentos da Natureza é uma coleção de 15 canções que têm a água como tema, algumas escritas para o disco (por compositores como Xangai, Nonato Luiz, Luli e Lucina), e outras recolhidas das tradições populares e folclóricas.
Mineiro, Dercio Marques é filho de uma gaúcha do Rio Grande e de um uruguaio. Continua ainda hoje construindo sua arte e suas manhas a partir dos interiores do Brasil. De lugares as vezes afastados, que ainda conseguem, a despeito da voracidade característica da indústria cultural, celebrar manifestações típicas da cultura popular brasileira. Representa essa vertente de artistas - em geral alijados da mídia grande (exceção quando morrem, exemplo recente e acabado o caso da violeira Helena Meireles - cuja notícia do falecimento rendeu bons minutos no Jornal Nacional, da Globo). A essa inclinação à cultura popular e imaterial, Dércio Marques deve a sua verve de pesquisador.
Antes de terminar, é bom registrar que ele percorreu, ao lado do também pesquisador e produtor musical Marcus Pereira, diversos pontos do país e do continente latino-americano. Dessa incursão quase científica descobriram raridades como cantigas, sons e costumes que renderam a célebre coleção de discos do selo Marcus Pereira - que alguns musicólogos defendem como o mais importante projeto fonográfico realizado até hoje no país. Gravou de Cartola (os dois primeiros) a Elomar, da Orquestra Armorial - regida pelo maestro e compositor Guerra Peixe - e Banda de Pífanos de Caruaru ao experimentalismo de Walter Smetak. Verdadeiras raridades que hoje não encontramos mais.
Seu lado ecológico pode ser notado quando de sua apresentação no Festival Folclórico, das Festas de Agosto, em 2009. Ao chegar ao palco, viu que para ser montado haviam cortado alguns galhos de uma mangueira, em frente ao Banco do Brasil, ali, no iniciozinho da Gonçalves Figueiredo. Reclamou. Apanhou algumas poucas mangas que estavam no chão e as levou para o camarim. O destino delas, não sei. Mas da reclamação, ficou o exemplo.

Rio abaixo rio acima, tudo isso já andei ô beira mar adeus dona...
Procurando amor de longe que o de perto já deixei ô beira mar adeus dona, adeus riacho de areia
Adeus adeus, toma Deus, que eu já vou me embora...

Tropeçar também ajuda a caminhar

A gente nem sente a vida passar.
Agora mesmo, vou fazer 58 anos. Temos ainda quantos pela frente? Ainda mais lutando contra um doença que brinca de esconde-esconde no nosso corpo...? E a vida é tão boa!
Eu vivi bem todos estes anos, não posso me queixar. Desde quando me entendo como gente, da minha infância até agora, que nem sinto que sou avô de uma menina de 15 anos, e de dois japoneses. E que estou para ser um sessentão... Tomara!
Tem dias que a gente acorda com todos os demônios em alerta. Acho que hoje é um destes. Queremos falar de tudo, e tudo chega como em quartos da memória, salas de lembranças.
Nem me lembro quando conheci a Coca-cola. Num dos quartos da memória (ou seria numa das salas?) há uma festa na casa dos meus padrinhos Elias e Iraci (Zita) Camargo, onde, praticamente, me embriaguei com o refrigerante. Antes, só conhecia o Guaraná “RC”, ou “Luna”, cuja música era tocada na ZYD 7: “Guaraná Luna, Guaraná Luna, é melhor e não faz mal...” A RC, da Ramos & Companhia, cheguei a conhecer a fábrica, a Rua Irmã Beata, perto do nosso campo de futebol. A Luna, creio, era perto do asilo São Vicente de Paulo, no final da Doutor Veloso, perto de outro campo de futebol.
As pessoas sempre me alertavam, antes de provar, que a Coca tinha gosto de sabão. Depois de prová-la, acho que deveria ser um bom sabão. Anos depois, o irmão mais velho me ensinou a misturá-la com Rum Montila. Fiquei fã de Cuba. Libre! E comecei a me interessar por Che Guevara e a revolução. Mas... O que tem isto a ver com o dia de hoje? Parece papo cabeça de Wood e Stock, aqueles dois personagens que fumam orégano para sentir o barato.
Outro quarto da memória: tive meus amigos invisíveis quando criança. Como os que meu filho Luis Carlos Junior teve, até pouco tempo atrás. Ou ainda os tem, mas estão viajando. Eles se foram, como os do meu filho. Numa viagem. Na adolescência, cheguei a ter diversas amantes invisíveis. Agora, acredito ter vários inimigos invisíveis. Alguns, porém, muito visíveis.
Mas o quarto da memória que mais gosto é o de Montes Claros. Teve um tempo que tinha aquele negócio da visita de um amigo, no domingo a noite. Minha mãe me obrigava a tomar banho no capricho para estas visitas. Que nem interessava tanto a gente, mas só aos pais. Mas íamos, educados que éramos. Éramos? Pois! E na mesa? A gente se esforçava para usar corretamente os talheres e não falar com a boca cheia. Abrir os braços para cortar a carne então...
Eu lembro que já tomei muito óleo de fígado de bacalhau. Devia ser de bacalhau mesmo, pois só via o peixe na sexta-feira santa. Cozido, com batatas e sem a cabeça. Mas nunca na minha vida tomei as famosas pílulas de vida do Dr. Ross.
Quartos e salas existem muitos, principalmente sobre festas de aniversário. Na infância, sempre que ia a uma festa, vinha pra dar dor de barriga. Depois! A gente se empaturrava de cajuzinho, olho de sogra, bolo, pastel pipocado, sanduíche de pão de forma com maionese feita em casa.
Afinal, ciclos se abrem e se fecham. E a gente tem que se dar conta disso.
Agora mesmo, minha filha faz 15 anos.
Certo, tenho outras, até mais velhas. Sem falar os nomes, pois elas não gostam que se revele a idade; Uma de 32, outra de 30, mais um de 22, a gorutubaninha de 21, Victória Angélica Maria, que faz 15, e o Luis Carlos Junior, o Juca, encerrando a família, com seus atentados 10 anos. A família é uma transação de olhos e retratos, nos ensinou João Rosa. Todos feitos por prazido divertimento engraçado, é bom acrescentar.
Eu sempre imaginava que ao chegar a esta idade, estaria mais tranqüilo, cuidando de coisas fúteis, com hora para leitura, descanso, caminhada. Graças a Deus, o destino, e Ele, não me deram isto. Propuseram coisas diferentes como acordar cedo, preocupar com as pessoas, chamar as crianças para irem à aula, dar o leite à Lara, comprar pão e bater papo com Newtinho Rabelo na Padaria Montes Claros, fazer achocolatado, dar camarõeszinhos para Carolina. Depois, saborear um iogurte com germe de trigo, aveia, farinha de linhaça, passas e granola. Começa o dia. Sair para o trabalho, encontrar amigos - e inimigos -, e cumprimentá-los, com o mesmo sorriso. Viver da vida o melhor que ela nos dá, mesmo com tanta coisa ruim.
Hoje, fico olhando e imaginando estes meus filhos. Bianca adora música. Tanto que só se apaixonada por bateristas de bandas. De preferência, que gostem de rock. Morena está 24 horas adiantada, num Japão em reconstrução, mas, aposto, com saudades de casa, do arroz com pequi que só o pai sabe preparar. Brisa, minha gorutubaninha, vem sempre, liga sempre, mais do que eu ligo pra ela. Um amor. Duda está ao lado, mesmo não tão perto, mas menos distante, com suas preocupações, saindo da adolescência. Toya e Juca ficam presentes. Juca mais preocupado, na idade da inocência. Toya, na idade do descobrimento amoroso, das doiduras infindas. E eu que pensei que ele seria uma moça fina, discreta e, até mesmo, equilibrada. Nem namorado teria. Qual o que!
Quando, seu moço, nasceu meu rebento, veio pra arrebentar, me lembra o Chico Buarque. Chegou um mês antes do esperado, talvez porque não queria ser tia de Bárbara, minha neta, que nasceria primeiro. E chegou para bagunçar naquele 28 de abril, mesma data da inauguração da Sorveteria Cambuy, anos antes. Veio para equilibrar as coisas, unir as pessoas. Que o tempo é que a matéria do entendimento.
Veio para trazer lembranças. Como quando escuta “He ain’t heavy, he’s my brother”, e me traz Rays para perto de mim. Ou quando revê a série “Maisa”, e, sem querer, faz-me sentir mãe Maria ao lado cantando baixinho “Meu mundo caiu...”, no meu ouvido. Ou Juca, quando dorme com os joelhos levantados, e quando anda na praça, com as mãos para trás, me trazendo Novaeszinho de volta. Felicidade se acha é nessas horas, em horinhas de descuido.
Por isso, filhos, lembrar um tempo é como escrever uma fábula, misturando elementos indistintamente. É como fazer um universo ficcional junto a elementos fantásticos, distante deste naturalismo que toma conta das histórias. É isso. Só isso!

Pois eu já pegava na sua mão

Era início dos anos 60. A montesclarina província estava em marcha lenta. O bairro São José acabava ali, na Rua Gregório Veloso. Depois, só uma trilha nos levava até o morro onde seria construído o DER. E ainda tinha aquela pinguela para atravessar, do rio de esgoto que passava ao lado do colégio São José. Ou então, se pulava!
Do outro lado da cidade, o bairro Todos os Santos começava a ser formado. Também uma pinguela, feita de uma árvore tombada, nos deixava atravessar o rio dos Vieira. Onde hoje está o Elos Clube, dos portugueses, ficava um dos nossos campinhos de futebol preferido. Tinha outro, mais abaixo, perto de um pé de araçá, onde nosso time, que tinha Márcio Hiran como artilheiro, enfrentava o de Marquinhos, que vinha com seu irmão, Márcio, como beque central.
Havia gangues sim, naquela época! A nossa era da igrejinha do Rosário, que, derrubada, estava sendo, pouco a pouco, reconstruída. Ali era nosso quartel general. Tinha também a do Paulo Bobão, perto da Santa Casa (ele era uma dissidência nossa. Criou sua própria turma após mudar da Coronel Prates). E do Marquinhos, baixo da Rua Irmã Beata. As gangues brigavam. Muito! Tudo disputado no futebol. Quando não nos campinhos da nossa infância, durante o dia, na Rua Coronel Prates, em cima dos paralelepípedos, à noite. Disputa da grossa. E com muito machucado, dedão do pé ferido, pois a maioria jogava descalço.
Uma das imagens que me vem agora, na lembrança, daqueles anos 60, é aquela da lata de sopa Campbell, de Andy Warhol. Ou o filme "Ben Hur", com Charlston Heston. O Cine São Luiz, onde “Sêo” Baltazar, pai de Gêra Brandão e Luiz Carlos, vez por outra, nos deixava entrar de graça.
O Rays era quem levava para casa livros, revistas e discos. Os discos, preferencialmente, da nova música, o rock do Roberto Carlos. Fez até uma camisa vermelha, igual àquela em que ele aparecia na capa de um LP, o do Calhambeque. Bip-bip! Pai ficou retado, mas acabou concordando com as modernidades que começavam a aparecer. Era a vida que mudava naquele início dos anos 60. Também músicas de Elvis Presley, livros e revistas com fotos de Marilyn Monroe, os catecismos do Zéfiro apareciam em casa. Fiz uma pequena coleção de revistas e livros. Mas uma das namoradas do Rays - acho que prima do José César Vasconcelos - disse que eu não podia ler aquilo. Pegou tudo e sumiu. Deve estar no seu quarto até hoje, pois logo depois ela e Rays se separaram. Serve, pelo menos, como souvenir para ela. Lembro que pai, fã de carteirinha do presidente Juscelino Kubitschek, não foi à inauguração de Brasília, a nova capital do país. Mas comprou todas as revistas da época, Manchete e Cruzeiro, que até hoje estão guardadas.
Só no final daqueles anos de liberdade vigiada (afinal, os milicos pegaram o poder em 64), foi que descobrimos o movimento hippie, que pregava a paz e o amor, através do poder da flor [flower power], do negro [black power], do gay [gay power] e da liberação da mulher [women's lib]. Os anos 60 foram de manifestações e palavras de ordem. Elas mobilizaram jovens em diversas partes do mundo. Inclusive na provinciana Montes Claros, que mudava de cara pouco a pouco. Em marcha lenta, é claro.
Foi nesses anos de mudanças, que ganhei meu primeiro jeans americano, o básico da moda de rua. Uma calça Lee, que desbotava e perdia o vínculo com as roupas normais. Presente do irmão mais velho. Aquilo dava liberdade e rebeldia.
Estudava no colégio São José. Indo ou voltando, passava pela zona, na Padre Augusto, no fundo do antigo cemitério. Que delícia aquela mulheres com seus peitões nas janelas, nos chamando para nos tirar a virgindade. Aquela troca de olhares, aquele medo e aquela proibição juvenil.
Irmão Jaime Damião batia em nossas mãos com aquela varinha de pescar. Seria sua varinha de condão. Por qualquer motivo: se não respondêssemos em francês, se participássemos de reuniões “obscuras”, como classificava as reuniões no DEMC de então. O montesclarino participava do movimento estudantil, que acabou explodindo e tomando conta das ruas em diversas partes do mundo. Contestávamos, aqui também, a sociedade, seus sistemas de ensino e a cultura em diversos aspectos, como a sexualidade, os costumes, a moral e a estética. E sobrava muito para mim.
Sempre apresentava versões diferentes daquela mostradas nas aulas. Seria rebeldia? Irmão Ladislau Figueiredo talvez achasse que fosse. Chamava-me sempre a sua sala para pregar o “estabilismenth”. Mas não dava! Jornais, como o Correio da Manhã, revistas (Realidade), nos abria a cabeça para outras coisas. Tanto que, no começo dos anos 70, quando já se tocava “Je T’aime, ma non plus”, “pediram” para que fôssemos trocar idéias em outras escolas. E lá fui para a Escola Normal... Onde encontrei com Celso Leal, Manoel Oliveira e Jaime Cruz. Para trás ficavam 11 anos de São José, e uma vida de estudos.
Em Montes Claros, mesmo em marcha lenta, também se lutava contra a ditadura militar, o que iria mais tarde resultar no fechamento do Congresso e na decretação do Ato Institucional nº 5. Não se lutava como no Rio ou São Paulo, pois o Coronel Georgino marcava pesado. Mas lutava-se quando ele piscava...
A cidade seguia sua vida de interior. A renuncia de Jânio Quadros nos caiu menor que a morte de John Kennedy. Na casa de tio Geraldo e tia Edi, junto com Márcio, Tereza e Bete, torcíamos pelo Brasil na Copa de 62. Tia Edi amarrava o “rabo do diabo” embaixo de mesas, e sempre saia gols. Foi lá também que, em 65, nas tardes de domingo, assistíamos, numa TV preto&branco, cheia de chuviscos, a Jovem Guarda. E, mais e mais, a modernidade nos chegava. No cinema, Belle de Jour, com Catherine Deneuve, Bonequinha de Luxo, A Doce Vida do Fellini, até O Pagador de Promessas, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes.
O tempo passava suave naquela cidade do interior, que um dia ainda viraria metrópole. As quintas-feiras, que antes eram de almoço na casa dos padrinhos Elias e Zita Camargo, na Gregório Veloso, ficavam para trás. Elias já me servia uma Gin Tônica, e os quadros nas paredes pareciam mais interessantes. Eles moravam ao lado da casa do professor Raimundo Saturnino, pai do inquieto Paulinho Manga-Rosa. Que dupla: Manga Rosa e Perereca! Nunca chegamos a jogar, naqueles anos, pelo mesmo time de futebol. Embora jogássemos sempre no mesmo time de coração.
O almoço da quinta era sempre bife a milanesa com banana frita. Uma delícia! Feita pela Geralda, irmã de Belinha Grande, filha de Vó Mariinha, que morava na Malhada das Almas.
Não só Roberto, mas também os Beatles já rodavam na vitrola enquanto nadávamos na piscina do Max-Min. Ou íamos, em excursão, com tio Geraldo, para Pentáurea, aquele local longe, cheio de areia movediça, intocável. Foi na casa de tio Geraldo que escutei, pela primeira vez, o LP Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Que tapa na cara! O que era aquilo? Que música diferente, interessante, desbundante era aquela? Foi ali que começou tudo! Ou continuou...
E vieram filmes como Barbarella, com Jane Fonda. O disco Tropicália - ou Pane et Circenses -, do Caetano Veloso. 2001, Uma Odisséia no Espaço, do Kubrick, ali, no Cine Fátima. Os matinês do início da década, que formavam filas imensas no Cine Coronel Ribeiro, por causa dos seriados, ficavam para trás. A música já era outra, não aquele roquezinho do Calhambeque e de blusas vermelhas.
Para o desbunde ficar maior, Woodstock aparece! Eram três dias de paz, amor e liberdade. Nas telas, Easy Rider, sem destino. Com eles, porém, nos chega a morte chocante de Sharon Tate, esposa do Roman Polanski, naquele agosto de 1969. Aqui, Carlos Marighella era assassinado, em 4 de novembro daquele ano. A ditadura mostrava que não ia embora. Que ia nos incomodar, queria ou não Coronel Georgino.
Talvez o que mais tenha caracterizado a nossa juventude naqueles anos 60 tenha sido o desejo de rebelar, a busca por liberdade de expressão e liberdade sexual. O surgimento da pílula anticoncepcional foi responsável por um comportamento sexual feminino mais liberal. Porém, elas também queriam igualdade de direitos, de salários, de decisão. Até o sutiã foi queimado em praça pública, num símbolo de libertação. Os 60 chegaram ao fim, coroados com a chegada do homem à Lua, em julho de 1969. Woodstock Music & Art Fair, em agosto, reuniu cerca de 500 mil pessoas em três dias de amor, música, sexo e drogas.
Mas aqui, nestes montesclarinos sertões, todos achavam que a cidade continuava a andar em marcha lenta.
Mas era pura mentira, pois eu já pegava em sua mão...

A emancipação de Valmyr Melancolia

Escutar “Trejeito”, o novo CD de Valmyr de Oliveira, nosso eterno Valmyr Melancolia, me leva à Janaúba de 25 anos atrás, com suas ruas tranquilas, aquele jeito vagabundo dos viventes, Xiba num canto da praça, perto do BMG.
Escutar “Acorda”, do Jorge Takahashi, me leva de volta ao Festijan – o Festival da Canção de Janaúba, realizado naquele longínquo julho de 1986. E me traz ótimas recordações.
Afinal, entre um cam®inho e outro, há muita coisa para se fazer naquela cidade gorutubana. A região me mostrou paraísos ecológicos, como as praias de Barreiro da Raiz, o lago do Bico da Pedra, a serra do Talhado, Serra Branca, onde a Globo filmou “Grande Sertão”, a cachoeira do Serrado, que serra a montanha. Durante o passeio, pode-se suspirar a vontade, seja pelo amor, seja para recuperar o fôlego. Pode-se curtir o pôr do sol romanticamente no pico da serra onde estão instaladas as torres de TV, e de onde a vista alcança até Montes Claros. Ou pode-se, simplesmente, ouvir música. Da boa!
E a música de Valmyr Melancolia encanta pela simplicidade. Não chega a ser uma obra-prima, mas mostra que o artista continua em boa forma, com seu rigor estético e com frescor de iniciante, mesmo aos 50 e poucos anos. Ele conta histórias, articula, ironiza... Tudo com poesia, escrita ou musical.
Sem ser especialmente inovador, o CD traz o que Melancolia sabe fazer de melhor, em dois lados. O “A” - Trilhas do Tempo -, composições suas e com/de amigos Jorge Takahashi, Arlen Azevedo e Georgino Junior. E o lado “B” – Trejeitos -, sua parte instrumental afiada. Melodias agradáveis que matam qualquer sede por melodias.
Takahashi continua o velho urso em letras poéticas. A sua veia lírica aparece em muitas faixas, como “Trilha do Tempo” - solos na vida/ presos no tempo/ estamos sempre a procurar. Muita coisa inspirada na música negra brasileira, no clube da esquina, no jazz e rhythmm´blues. Não tem nada a ver com o cenário bunda-mole da música brasileira atual. Na verdade, o CD é música. Todo música.
Particularmente “Acorda”, que me levou aos anos 1980 naquela cidade gorutubana. A canção ficou em segundo lugar no Festival – perdeu para uma música de protesto que veio dos lados de Belzonte. Nunca havia sido gravada, mas eu sempre a escutava – tenho o Festival ainda hoje gravado, em fita k7 - transferida depois para uma fita magnética 226, da Scotch. Já é hora de transformar aquele festival em CD...
E mais um que foi/ Sem a terra, sem país/ Sem bandeira, sem raiz/ Por mais uma vez... Vem acorda desse laço, desse nó/ Mas não chora não/ Velha morta cicatriz...
O som mais Montes Claros vem na gostosa “Catopelando”, de Valmyr e Georgino Junior. Ali aparecem as cores e os cantantes de agosto, a homenagem a Miguel Sapateiro, Mestre Zanza, José Carroceiro - São Serafins, são os Joãos/ É tanto rosto sem nome/ Debaixo desses penachos. Coisa de gente festeira, coisa de povo surrado, que se liberta, alforria, num cantar meio folk.
Coisa boa quando temos tanta coisa ruim tocando nos rádios. Está na hora de se libertar, alforriar nossa música.
Onde foi parar aquela canção do Roberto? Aquelas guitarras distorcidas dos festivais de MPB? Aquele “Baby” dos Mutantes? A “BR 3” de Toni Tornado? Raul Seixas e seu “Medo da Chuva”? Ney e a “Rosa de Hiroshima”, Rita Lee e essa “Mania de Você”? Chico Science, Raimundos, Marcelo D2, Charlie Brow Jr, Skank? Cadê a cadencia do samba? Será que não temos substitutos para o Ultraje a Rigor, Paralamas, Titãs, Legião Urbana?
A música brasileira ultimamente esta entre o bom ou ruim?
Sei que é raro escutar a música popular de hoje e encontrar coisas que surpreendam. Acredito estar havendo uma grande transformação, sobre a qual não sabemos nada.
E não vejo uma reflexão sobre isto.
Tenho acompanhado – e sendo influenciado – pela rock da era Beatles, da bossa nova, jovem guarda, tropicália, do rock setentista, psicodélico, do pop dos anos 80, 90, 2.000, dois mil e um, dois mil e dois, tal qual o Expresso do Gil.
Hoje, me surpreendo com tanta canção bunda-mole, e que faz sucesso.
É como diz José Wilker no CD do Melancolia: o menino vai, pequeno como as pedras miúdas na beira do rio.
Tomara que outros sigam seu exemplo.

Hoje (ainda) é dia de rock

Era uma vez um maestro de banda, Pedro, que morava com sua mulher, Adélia, e os cinco filhos, num lugar chamado Minas. Ele aprendeu teoria musical por conta própria, através do método ‘gianini’, até então conhecido. Tudo isso já faz muito tempo e nem se sabe se Minas ainda existe.
Um dia Pedro ouviu uma música tão extraordinária que para escrevê-la seria necessário inventar uma clave diferente daquelas do ‘método gianini’, tarefa que se dedicou à vida.
Era assim que, em 1973, estréia a peça “Hoje é Dia de Rock”, na então arena do Rosário, a Praça Portugal. A frente do Grupo de Teatro Rock, o diretor João Batista Costa, nosso professor Joba Costa, que comandava aquelas pessoas que saiam de um conto de fadas.
Um sufoco os primeiros dias daquele novo tempo que começaria ali. Após ensaios e mais ensaios, reuniões e reuniões, trabalho e trabalho, a transformação da igrejinha do Rosário num palco - inclusive com a confecção de arquibancadas para o público. A estréia, no dia 28 de maio de 1973, e um bom público de cem pessoas, capacidade máxima permitida, todas as noites, o que dava um sabor diferente na vida dessa gente. Com o buxixo, outras e outras e outras e outras pessoas iam conhecer aquela turma de hippies, que – sacrilégio – transformaram a igreja num teatro. Com autorização do Padre Dudu, é bom deixar claro.
Na terceira apresentação, um estranho despacho foi colocado na porta da igreja. Coisa mais esdrúxula: despacho com pinga, farofa, galinha, completo, como se requer um bom despacho. O que não impediu o público nem a peça de seguir em frente. No outro dia, mais um despacho, agora com peixe. Tinha gente procurando o sobrenatural como solução. E conseguiram.
“Hoje é Dia de Rock” é um texto de José Vicente, mesmo autor de ‘O Assalto’ e ‘A Casa das Meninas’, entre outros. O grupo Tapuia apresentou, anos depois, ‘O Assalto’.
‘Hoje é Dia de Rock’ foi encenada por duas gerações da cidade, a segunda com o grupo ‘Diga que não me Conhece’, também dirigida pelo Joba. Nesta, nomes como Igor Xavier, Marluce Cardoso, Sued Parrela, Takão, Lena Zuba.
A peça, antes de ser um bom trabalho, era uma curtição. E que curtição. Destas que a gente imagina, mas não sabe que existe. Nela, as pessoas saiam de um conto de fadas, do era uma vez... E mostrava o processo de massificação do homem, até ter a liberdade de volta, a curtição restituída. Daí pinta um ET e começam os milagres, com todos passando a acreditar nas coisas. Até Elvis Presley sai de um rádio. A história se completava com uma viagem musical, sugerindo um deslocamento contínuo.
Ernane Camisasca era o responsável pela expressão corporal dos atores. Além de fazer às vezes do próprio Pedro, na versão de 1973. Sylvie Oliffsom tomou conta dos cenários e figurinos, com Aquiles Fonseca na iluminação e Alberto Magno fazendo às vezes de relações públicas. O narrador, Itamaury Telles, antes de se aventurar pelo mundo dos números que quase o enlouqueceu no Banco do Brasil, e retornar como escritor consagrado com ‘Urubu de Gravata’ e ‘Noturno para o Sertão’. No som, lá estava eu, entre discos de Elvis Presley, Little Richard, Jerry Lee Lewis, Chuck Berry, Stevie Wonder, King Crimson, Jethro Tull, Pink Floid e Sá, Rodrix e Guarabira. O que gostava de ouvir, o que dava prazer. Rubinho emprestou sua coleção de rock dos anos 50/60, uma raridade que deve ter até hoje.
Viajante, viajante,
De onde é que você vem?
Viajante, viajante,
Aonde é que você vai?
Viajante leva eu
Leva eu pra viajar.
Na peça, Ernane Camisasca era Pedro, Eliane Jansen, Adélia, Vânia Versiani Rosário, Argentino Athayde Quincas, Wallen Medrado David, Sylvie Oliffson Isabel, Joba Valente, Elizabeth Pimenta Neuzinha, Adriano Lafetá Elvis Presley, Eliane Castro Índia, Alberto Magno Guilherme e Norma Campos Efigênia. Ainda havia os passantes, Waldemiro Leão e Carlos Teófilo. Além daquela ‘assistência’ de Fidel e Ricardo Xarope. Um novo tempo começava ali.
Quem pensava que teatro já era, principalmente em Montes Claros, que vinha dos carrancudos anos sessenta, de militares e militâncias, é porque nunca teve a oportunidade de assistir à “Hoje é Dia de Rock”, em qualquer lugar que ela foi levada. Aqui, o teatro, pequeno, deixava a platéia fazer parte da história. Ela saia contente de ter assistido um bom espetáculo, saia sorridente e feliz.
O sonho do Grupo de Teatro Rock se desfez numa viagem a Brasília de Minas. Na volta, o fusca em que alguns componentes estavam bateu em um trator parado no meio da estrada. Foram dias de tensão, de reza, de pensamentos positivos. As seqüelas, porém, ficaram. O grupo acabou. Ficaram os filhos do silêncio.
Parece ficção, cena de cinema, mas aconteceu tudo assim mesmo.
Aquela peça, entretanto, mexeu com a cabeça das pessoas, embora o feitiço do tempo dissolva os contornos da memória. Porém, o estilo, a música, as informações e sensações que fizeram as delícias daquela época, nos parece eterna, imemorial. A tensão entre a perpétua sede da novidade e a placidez da norma social fica como um traço, como algo que sempre tivesse vivido ali, naqueles anos. Mas a verdade é que nem sempre foi assim.
Tentar imaginar hoje aquele grupo do início dos anos 60, em que ainda se encaixavam o Eduardo Brasil, Alik Poppof, Raymundo Mendes, Romildo Ernesto Mendes, é quase como imaginar vida em outro planeta. E somos nós mesmos que, no fundo, traçamos essa linha de estranheza.
Devemos à força desse pessoal o mérito por abrir um buraco no dique da mansidão, permitindo que a enxurrada dos novos tempos inundasse a ‘paradeza’ reinante. O tempo de transformação teve sua espoleta. A partir dali, nada de baladas gemebundas,
Sempre tem que haver primeiro uma estrada. Depois, é só colocar os pés dentro dela e partir. O que não pode é ficar, amiguinho. A espera, só traz - a morte.
Ficar é apodrecer.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

I will be there

O pulso ainda pulsa
E o corpo ainda é pouco
Ainda pulsa
Ainda é pouco

Dava a impressão de um barco com todas as velas enfunadas. Estava frio, ele usava seu chapéu de duende e dava ordens. As coisas tinham um jeito de funcionar sempre para melhor. Sei que a manhã estava em andamento. Fiquei entretido no buscar da minha veia, e perdi qualquer noção do tempo, a mente ocupada apenas com o sono repentino. Não sei se foi sonho. Acordei às voltas em endireitar o corpo para amenizar as costas doloridas. Foi só isso aquelas oito horas. Nada para lembrar. Isto aconteceu em 2009.
Nesta semana li no obituário da Folha a morte do humorista e radialista Sergio de Souza Leite, o Serginho Leite. Conheci sua obra ainda nos tempos da 98,9 FM, nos anos 1980. Ele lançou Criser, uma versão genial de Thriller, do Michael Jackson. Mas a música foi proibida pelo Departamento de Diversões Públicas da Polícia Federal. Nesta semana, teve um infarto do miocárdio.
É a vida.
Mas ela é bonita, é bonita e é bonita, como ensinou Gonzaguinha.
E a vida vem no pensamento. Podemos ter nossa casa atual, do jeito que queremos. Mas a futura, queira ou não, será junto a terra. Não tem escolha. Que seja no cemitérios dos Paus Pretos, da Malhada, Bom Fim... Ou num cantinho gostoso, debaixo de árvores, numa fazenda qualquer. Talvez a São João, de Zé Grande. Pois tinha tanta luz naquele céu da fazenda São João, que fica lá pelas beiradas da Lagoinha, que às vezes até passava um avião enquanto a gente cantava pra lua. Da fazenda São João a gente via um por do sol deslumbrante, naquele céu bonito de lá. Aquela terra, aquele rio que, de tão pequeno era profundo em nós, fica grudado na memória. Lá seria um bom lugar para se viver a eternidade.
Afinal a morte é a única experiência comum, não importa a raça, o país em que vivemos ou nossas crenças religiosas. É a única coisa que compartilhamos.
E não manda aviso. Ou, às vezes, até manda. Mas nem todos percebem.
E quando vai se ficando mais velho, com o passar de anos e anos, as lembranças ficam maiores e as perspectivas, menores. Mas as agonias de quem está perto dos 60 anos são maiores daquelas dos jovens de vinte e poucos anos? Sei não...!
Quando você atinge certa altura, tem aquele começar de novo, e tem o continuar.
Não existe volta, existe a continuidade das coisas.
Quando se faz 20 anos, o mundo é ali na esquina. Vive-se tudo, convivendo com a morte ao lado.
Quando se faz 40, deslumbra-se com um recomeço. A gente dá uma zerada, quer fazer isto e aquilo. Começa a se sentir maios poderoso para fazer as coisas, mais forte para se aventurar. Deixa pra trás aquilo que enche o saco, guarda no porão coisas e cousas. Aquilo que já cansou. Aos 40, quer alçar novos vôos, escrever, viver.
Aos 50, cinquenta e poucos, já é diferente. Mesmo querendo zerar tudo, já não tem muito tempo para fazer as aventuras desejadas. Quer apenas ficar perto da família, curti-la o melhor possível.
É o clichê da vida: quando se envelhece, a gente perde o garbo, pega mania boba, como de não fazer planos para o futuro, a longo prazo. Fica triste de repente, sem ter o que nem o por quê. Adota um ritmo mais lento com o passar dos anos.
E a morte é que é por conseguinte. A gente morre para provar que não teve razão, ensina João Rosa em “Os chapéus transeuntes”, de Estas Estórias. Pois!
Na época dos santos, eles morriam com antevisões do Paraíso. São João da Cruz, na noite da sua morte disse: eu cantarei as matinas no céu. Santa Tereza de Ávilla morreu sussurando: chegou, enfim, a hora, Senhor, de nos vermos face a face. São Francisco a recebeu com os braços abertos: seja bem vinda, irmã morte. A morte ideal na época dos santos era acompanhada do transe místico.
Morte ideal no século XXI é a repentina, sem dor, sem remédios, sem UTI. Tão repentina que poupe até a consciência de quem está morrendo.
Mas as pessoas não morrem, ensinou Rosa: tornam a ficar encantadas.
Mas onde está encantados o Escolástico? E o Celso? Ruy?
Será que estão segurando a mão de Deus?
Eles subiram cedo? Tarde? Tem hora?
Afinal, curtir a vida é quase que uma obrigação de quem respira.
Onde está hoje Mércio, Catulo, Zé Grande, Fidelcino, Waltinho, Acácia, Rays, Maria e Eugerson?
Foram magicamente transportados para um outro mundo maravilhoso, cheio de entidades encantadas.
Vão voltar, como prega o espiritismo? Pois!
Deus nos deu a graça de só morrer uma vez, disse Padre Vieira. A ressurreição, para São Paulo, seria a eternidade, ir para um mundo sem atribulações. Afinal, não somos super heróis, apenas passamos no tempo. E um dia, vamos partir para este além.
O além?
Existe um mistério indevassável sobre nosso destino após a morte. É nosso limite.
Mas pode deixar, i will be there.
Eu estarei lá!
...
Benjamin, Márcia, Nilde e João estavam no cemitério do Bom Fim dia destes. Maria, que não estava junto, ficava a imaginar.
Afinal, cemitério é um lugar tranquilo, ótimo para formular histórias, como as contadas certa vez pelo filho do Seu Ducho. E melhor ainda para imaginar a vida das pessoas que estão ali, ao seu lado.
Pena que em Montes Claros, vândalos roubem tanto as placas, cruzes e até fotos ali colocadas. Não há guarda? Acredito que só as guarda os do outro lado, mas que nem assustar sabem.
Benjamin, Márcia , Nilde e João vão andando pelas ruelas do campo santo. Deixam ali Eduardo Nery, que tem uma profunda desconfiança de si mesmo. Não sabe se está desencarnado e caminha entre os vivos, ou se está ali, vivo, conversando com os mortos.
Razão e sensibilidade.
A carne e o espírito...
Pois!

Sex in the Moc

Leya Bloodymary nunca usava calcinha. Era uma pureza de pessoa. Passou maus momentos quando estudava no Colégio São José, logo quando as meninas entraram no refugio dos meninos. Como gostava de escorregar no corrimão da escada, era a garota que todos queriam... Menos os irmãos maristas. Recebeu broncas de Irmão Ladislau. Também trabalhou certo tempo numa firma de tratores. Era a atração quando, após o almoço, se sentava numa mureta, com a saia curta. Os mecânicos não deixavam de passar a sua frente. E ela se divertia intimamente.
Uma vez, viajou para Londres, onde ficou quase um ano. Voltou dizendo ter conhecido um cara sensacional, que escrevia letras para Raul Seixas. Era um tal de Paulo Coelho. Disse que o namorou durante algum tempo, inclusive vivendo em sua casa. E junto com a esposa, Cissa. Todos juntos, numa cama só: ela, Paulo, Cissa e Peninha. Coisa da sua cabeça? Ninguém sabe.
Criativa, ousada e, particularmente, em paz com a vida, L.B. é assim, com aquela cor de jambo e pecado. É o personagem do meu filme de memórias que o vento levou e o tempo traz. Também gosta de magia, alquimia e astrologia. Não nesta ordem. Mas antigamente queria manipular os astrolábios, ler as estrelas, dominar a natureza, decifrar segredos.
Não sei por que, sempre a encontro pelas ruas. Ontem mesmo, passou pela Santos Dumont. Está mais alegre agora, e me conta ou relembra casos do passado. Afinal, ela é uma mulher aventureira, uma mulher do mundo.
A poucos dias, fui à casa de L.B. Naquele local, ruídos dos ônibus, a gritaria das pessoas na rua, o desacerto arquitetônico da área central, nada a faz desconcentrar. Me recebeu sorrindo, aquele sorriso travesso. Ali há um cheiro no ar, roupas usadas penduradas numa bicicleta ergométrica, latas de tinta abertas, uma tela meio que pintada, meio que borrada. Será que ela agora virou artista, penso, comigo mesmo. As portas estão escritas a caneta. Na do quarto, está a letra de “Amor, meu grande amor”. Na do banheiro, Joana Francesa e Ne me quitte pas.
Numa prateleira, livros. Muitos. Alguns títulos me chamam a atenção: “120 Dias de Sodoma”, do Marquês de Sade, “O Doce Veneno do Escorpião”, de Raquel Pacheco... tem Henry Miller, Cassandra Rios e a coleção de Carlos Zéfiro. Tem Charles Baudelaire e Paulo Coelho, Augusto José Vieira Neto e Carlos Drummond de Andrade. Me interesso por Mulheres de Charles Bukowski. Pego e abro numa página qualquer. Leya abre a janela e o sol de fim de tarde do verão montes-clarino entra, trazendo vida àquela parte da quitinete. Numa mesa, reparo uma faca e casca de laranja, já seca. Ao lado, um enorme dicionário Aurélio. Diz ser ali seu refúgio, onde conversa com as almas, medita, sonha com tempos antigos e aqueles que têm pela frente. E ama. “Tem um velho louco e safado aqui do lado”, diz, com voz carinhosa. “Ele bebe demais!”. “E você?”, ouso perguntar. “Sei lá. Uma garrafa de vinho, algumas cervejas, um uisque...” O cosmopolita passatempo etílico ainda continua, quando vai ao bar do Joaquim. Quinta no Quincas, doces lembranças. Toca música clássica. Ravel. Só podia. Revistas sobre uma poltrona vermelha. No chão, ao lado da cama, “Hustler”. “É um imã para os homens”, diz com o sorriso maroto. E olha que ela foi educada segundo as severas regras protestantes. E tinha um pai comunista.
Hoje com seus anos um pouco passados, ainda canta “não acredite em ninguém com mais de 30 anos”, enquanto toma banho. Seus olhos, quando canta, tem o olhar de um azul profundo, o rostinho de anjo. Enganador. Não me pergunte como sei. Ela continua livre, inteligente, ousada, verdadeira. E nos transfere sua paz. Seu amor.
Uma vez, L.B. resolveu usar uma cabeleira fake e falar com uma voz monótona. Neste dia, ela teria um encontro lésbico. Nunca falou o que rolou. Mas rolou, pois sua cara, no outro dia, era de traquinagens. Agora, anos depois, pergunto como foi. Responde apenas que M.T. conhecia aquela palavra que, quando pronunciada, faz com que uma mulher apanhe uma flor e a coloque no cabelo. Nada mais foi dito. Nada mais precisa ser. Para bom entendedor...
Leya é uma filósofa-gata. Sem tradução. Vem de uma família de esquerda. Seu pai militou no Partidão, e um tio foi preso pela ditadura. Namorou um guerrilheiro de araque, destes que se vê ainda hoje falando da luta armada contra a ditadura, sem nunca ter apanhado uma arma. Talvez apenas tenha visto, de longe, a capa do Livro Vermelho do Mao Tsé-Tung.
Não se envolveu com atividades estudantis na faculdade. Namorou um holandês seis anos mais velho, que lhe deu uma visão da vida européia. A ensinou a falar francês e inglês, a vestir, a comer, a ter certa sofisticação. Com ele descobriu sua sexualidade e seu medo da Aids.
Na nossa conversa, lembra que se esbaldou durante anos no bloco Biô e Salomé, frequentou o Bar Sibéria, na esquina da Dr. Veloso com Presidente Vargas, só para beber vodca com coca, bater papo com Virgílio de Paula e Biô Lopes. E conversar com “Seu” Luis, falando sobre a época dos picolés de groselha, vermelhos, redondos. Seria provocação? Fala sobre Vicentinho da Pavisan, de Toninho, irmão de Carlinhos e Dequinha, e das guloseimas do bar dos japoneses Manoel e Joaquim, no boteco da Dr. Veloso com Tiradentes.
Me vem à memória que Leya Bloodymary tinha uma estabilidade emocional que dependia tanto de uma relação sólida, de um homem que a ajudasse a enfrentar as tempestades da alma, como de uma cachacola na esquina. Às vezes, entrava em depressão, ficava melancólica.
Nunca lhe faltaram (nem faltam) homens, é bom acentuar. Ela suga suas energias. Às vezes trepava (trepa) muito. É quase uma mulher-vampiro para seus homens. Uma predadora erótica? Ah! Como se lembra de Lucrezia Borgia... Naquele quarto, os gemidos, os sussurros, onomatopeias... Ai! Laralarilás. Gosta de brincar de gata e rato. Uma loba no cio, uivando pra lua. De mel! Bem lembrou Jorginho Santos na canção Safari. Foi onde o leite e o deleite se encontraram.
Na sala, ela coloca Caetano. O som de “Sozinho” enche o ambiente. Sentada no sofá ao meu lado se encosta, enrosca, parece pedir proteção. Usa minissaia, os cabelos estão molhados do banho, desgrenhados, a boca rósea e um par de pernas suculentas. Se põe a tecer a crônica sexual da vida alheia – e própria. “Já escutou Estrela Reluzente, do Zé da Gota?”, pergunta. “Não!” “Aqueles versos foram feitos para mim”, e canta “somos peças do mesmo jogo, somos amantes da mesma ilusão”. Cantarola quanto tempo leva para aprender que uma flor tem vida ao nascer. Diz estar viva, ressuscitada, há movimento em suas carnes, os sonhos esquecidos estão a sua volta e os desejos proibidos aparecem na superfície de sua pele. “Será que estas suas mãos ainda sabem abraçar e acariciar meu corpo”, interroga.
Leya Continua sem conseguir segurar um afeto. Continua um personagem dramático. Continua com pêlos tremendo ao vento ateu. “Tiau, Bodanzky!”, digo, num sussurro, saindo devagarzinho. Ela parece dormir com as mesmas pausas, reticências e silêncios.
Lá fora, olho e revejo o Cine Montes Claros. Da Praça Dr. Carlos vem o som: Será por quê? Será por quê? Será por quê? Nem o senhor porquê sabe responder.
Ah, Santoro...!

Anarquista? Sim, graças a Deus!

Nossos escritores têm pudor do sucesso. Não topam seduzir um público grande escancarando o coração, sem culpa e vergonha, sem medo da catarse. Amelina Chaves não tem medo, nem qualquer problema para seduzir o leitor. Nem o de puxá-lo pela corda direta do coração. A doçura é uma constante em seu trabalho.
Dizem que ela é do tempo do cafona, do kitsch. Que nada! Mel, se assim posso chamá-la pela doçura de ser o que é, é de antes de existir qualquer definição. Ela já era lida desde quando as penteadeiras das putas e o jukebox existiam, embora não mostrasse tais escritos para qualquer um.
Conheci Mel quando estava no Diário de Montes Claros, no inicio da década de 1970. Um dos seus primeiros escritos saiu na Káthedra, revista de cultura daquela época. Junto com Felipe Gabrich, íamos comer peixe e beber uma cerveja em sua casa (ainda a mesma de hoje), nas tardes noites de sexta-feira, quando uma bruxa boa atormentava uma de suas filhas. De lá pra cá, cresceu ainda mais, escreveu, lançou livros e livros, e posso dizer ser a maior romancista da atualidade neste Montes Claros da vida.
Quando escreve, ora afoga as mágoas de amores nos braços de outros, sem pudor de se assumir traída - por quem? pelo personagem? -, ora é a gostosona de plantão. Escreve sobre a linguagem viciada dos centros, a saudade mal cozida dos bairros e a carência aguçada da periferia.
Pela definição de Elza Pound, Amelina, antes de ser a escritora consagrada que é para nós, seria uma espécie de inventora. Captura vertente da infância, mistura o figurino com o despudor da auto-ironia e da chacota. Escreve lindamente, amelinamente, amelindamente, sobre tudo. Lembro-me da gestação de “Diário de um Marginal”, que saiu em 1979 e do “Andarilho do São Francisco”, de 1981, dedicado à Mestra Antoninha, ao velho Antônio, a Adão, Josecé, Felipe Gabrich, João Balaio, ao poeta do céu, ao menino que escrevia na areia e aos hippies. Vez em quando os leio novamente. Como leio “Priapo de Ébano”, “O Eclético Darcy Ribeiro”, “Eterna Lembrança”, “O Rancho da Lua”, e “O Livro Proibido”, onde “libera geral”. São fases importantes, que nos mostram a realidade e a ficção. Pois ela inventa, mas não aumenta.
Mel é inventora porque também não se envergonha do que encarna, do que escreve. Assume-se. É de carne, tem seus desejos e suas tesões, e está sujeita a falhas e acertos. Teve uma escola que não foi uma escola, foi uma experiência de vida. Por isso, cria uma constelação interna e depois passa para outra coisa. Sua vida foi (e é) um paraíso, porque tudo de criativo captou, mas era (e é) um inferno também. Criou seu ambiente, com certa obsessividade até chegar às portas da dominação. Vive no limiar entre a vida cotidiana e a arte. Transmite, por trás de uma certa aparência de frieza, uma noção de ameaça sexual iminente. Como um vulcão prestes a entrar em erupção.
Mel não foi feita para parar. Mel não foi feita para manter ligações essenciais com coisas essenciais, pessoas essenciais e lugares essenciais. Foi feita para avançar sempre. E é o que faz de melhor.
Em cada escrita aparecem seus mundos, que não são os mesmos, mas se encontram muito mais do que imaginam. Em outros carnavais, já foi bem mais que a mulher fatal. Hoje é a femme fatale. Afinal, sexo nos tempos da ditadura era visto como coisa dos comuns, comunistas, subversivos. Mas era praticado por subservivos. Hoje, o que é? Uma propaganda no jornal?
Por dentro de Mel bate um generoso coração. Continua uma anarquista, graças a Deus! E deliciosamente verdadeira, fala o que tem que falar, escreve o que a vida ensinou/a e lhe deu/a. É sincera, direta. Não esconde o que pensa.
Encontro pouco atualmente com Amelina, mas quando encontramos caímos na gandaia de boca, caímos de cabeça na dança. Ela é toda poderosa e cheia de luz, e é tão bom ver como nos ilumina e faz nossa vida valer... São todos os tons colorindo a nossa escuridão, clareando o som dos corações nos quatro cantos da vida, sustentando-nos na alegria e na dor.
Conversamos sobre as namoradas de antigamente, sobre as peladas de futebol e as histórias que a vida nos leva e nos traz, sobre a perda dos amigos e o sempre encontrar de amigos novos. A gente expulsa do coração emoções para se concentrar no futuro e vai deixando a vida antiga para trás. Quando você acredita em coisas que não entende, então você sofre: a superstição não é o caminho, lembra-nos, como ensinou Stevie Wonder.
Não tem hora para receber amigos. Em sua casa tem biscoito farinha, biscoito fofão, biscoito nata, que derrete na boca com aquele café de rapadura. Não é a toa que lançou o livro “Folclore, Quitute e Amor”.
Anelina prega em nosso corpo, é um caso de amor com a literatura, vento que embala o cheiro da flor sem querer parar.
Amelinda nos traz juventude, é trecho de uma vida de um sonhador plantando esperança no coração pra depois aflorar.
Amelina Chaves é canto de roda e rua, contradança e congado, coisa de encabular.
A doçura de Mel é sabiá a cantar, fogueira a lumiar, liberdade a brilhar
Anelina, Amelinda, Amelina Chaves, a doçura de Mel é, pra nós, lembranças do que virá.

Sou louco, o que posso fazer? Escutar Billie Holyday?

Assisti “As Aventuras de Antonie Doinel”, do François Trauffaut, emprestado pelo amigo Rafael Gontijo. São filmes que me trazem boas lembranças - ou são lembranças que me vem à tona? Não sei ao certo. Nem ao errado...
O episódio “Antoine e Colette”, por exemplo, nos leva ao amor adolescente. Até a cor da vitrolinha dada de coração para a menina que morava no final da Rua João Pinheiro é igual à utilizada no quartinho de hotel em que ele fica. Só as músicas são outras. Ela gostava de Roberto, Caetano, Carpenters, Carole King. Ele, das francesas.
Alguns amores duram um tempo maior que outros. Isto acontece porque a gente vai crescendo e vendo o que é bom e o que vem do (a)mar... Nesta época, por exemplo, estava todo um amor adolescente, oculto, que cresceu e hoje se tornou vulto. Mas que bate no peito e, vez por outra, nos leva ao passado. Como outras coisas. Aquele era tempo de sorriso nos lábios, sanduíche de mortadela e guaraná. Eta, saudade! Mas saudade é para isso mesmo, sentir.
É preciso olhar essa vida antes e depois de assistir Butch Cassid e Sundance Kid no Cine Fátima. Época quando o amor salvava o tédio do dia a dia. Quem sabe um dia a gente se encontra no velho lugar!? Quem sabe um dia a gente ande de trem de ferro, coma salsichão num bar do bairro Barro Preto em Beagá, ou até torça para o mesmo time, assista novamente filmes que nos marcaram e ouça canções que nos perseguem.
Eu cresci assistindo filmes nos cinemas Fátima, São Luiz, Coronel Ribeiro, Ypiranga, Lafetá e Montes Claros. Velhas e boas tardes de domingo. Hoje, o DVD e a pirataria nos levam tudo em casa. Cresci lendo quadrinhos, que agora viraram graphic novels. Cresci brincando de finca na esplanada do Bom Jesus, na Malhada das Almas, e jogando bolinha de gude com João Véio, correndo as ruas no carrinho de rolimã com Márcio Hiram, subindo a serra do Mel com Agnaldo, João Ripão, Tino e Bodão. Hoje, não se vê mais estas brincadeiras, não existe serra, embora ela esteja lá e tentem colocar outros nomes nela.
No lugar em que a gente se acampava, bem na beirada do barranco, embaixo do pé de Jenipapo em que Charles, um dia, escreveu o nome de sua amada, não existe mais cachoeira. A serra virou ‘da Sapucaia’, ou ‘do Ibituruna’ engolindo o Mel e deixando a história em um canto qualquer. Acho que nem o pé de Jenipapo sobreviveu. Talvez o pé de goiaba branca da canção de Bodão ainda exista...
A Lapa Grande, a Pintada, a da Nascente e a Lapa D’Água, onde meu pai e Zé Manaíba me levavam aos domingos, virou parque que engoliu a fazenda de “Sêo” Pedro Veloso e dona Arinha. Ali os finais de semana eram de uma delícia só. Nunca mais andei a cavalo, nunca mais comi beiju com requeijão quente, nunca mais vi Arinha... Toda mata era boa, pois não tinha nem alçapão. Hoje, o perigo anda ao lado.
Aqui existia Montes Claros e a Montes Claros de baixo. Que não ficava na parte baixa da cidade, não era a divisão política. Era a zona do ‘meretríssimo’, como ensinou um irmão marista. Atualmente, as meninas estão em todo lugar. Fazem até anúncio em jornal. Daqui a pouco, chegam à televisão, já que na internet se espalharam. Acabou-se aquela fantasia de tomar uma cerveja na zona, de acompanhar Carlão, Curiango e Rays no domingo à tarde para “ver” as mulheres de Leobina ou Edna. Quiçá, uma rapidinha, a bacia no pé da cama para deixar tudo novo de novo, o rolo de papel higiênico pendurado no gradil da cama.
Não sobrou nem o ‘Café Columbia’ de “Seu Ciço”, onde estava a gemada mais gostosa de antes de dormir. Ou o ‘Rei do Sandwiche’, pregado em Cícero, como chamávamos Ciço. O ‘Bar Sibéria’, na esquina, com seu espetinho que Tião guardou a fórmula, a ‘Leiteria Celeste’ do Zé Priquitim. O tempo passou, a cidade se modernizou, montesclareou, montesqueceu. Não sobrou nem o café do ‘Zim Bolão’ nem a ‘Loteria Mineira’ de seu Donato, na esquina da Rua 15 com Simeão Ribeiro, e onde experimentei meus primeiros sorvetes da Kibon.
Os dias, as tardes, as noites montes-clarinas eram mais gostosas, diferentes, simples e tinha um quê de sensual. Tinham um quê dos quadros de Van Gogh. A gente podia ver até o café à noite, a enorme lanterna amarela que ilumina a esplanada e lança luz até as pedras da rua. As fachadas das casas que se prolonga sob um céu estrelado, de azul-escuro ou violeta.
Nos poços do rio Vieira até a Iara aparecia em noites de lua. Hoje os tempos são outros. O perigo ronda ao lado, o choro é mudo. Já nem faço mais a indagação em torno dessas diferenças. Muitos dos meus amigos se perderam na noite. Alguns, se mudaram de cidade, bairro, rua, quarteirão. Uns surgem de repente, na virada da esquina. Outros, vem em ondas telefônicas. Alguns mais, interneteiam-se e aparecem na tela, num baita susto.
Tem nada não, já ensinou Charles. Caminho é por onde se passa...
A saudade que sinto não é de tristeza, nem queima o peito. É apenas saudade que neste futuro a gente sente do passado, sem mudanças ou concessões, pois a gente é tão diferente da gente.
Os dias passam e não passam, enquanto aquelas velhas senhoras observam borboletas e pererecas, sentadas em tocos de pau no parque. Um pouco distante deitados na relva, um casal de namorados toma consciência de certas coisas, naquele vira e mexe. É o amor, diria o poeta - quiçá ele ainda nos salve. Pode-se observar que o verde do lugar é mais verde, embora a grama tenha verdes diferentes, desbotados aqui e ali. Psicologicamente, curto o encantamento simbiótico. Assim são estas coisas
Tenho muito ainda que andar, viver, aprender e aprontar por aí. Enquanto isso, assisto com meu filho, na televisão, o Pica-Pau, na Rede Record.
Everybody thinks I’m crazy/
Yeah! That’s me that’s me that’s me/
A couple of holes in everything/
“na-fa-got!” “I way ah-na-ha-ha”/
Crazy is me, and waht more can I do?
De fato, “todo mundo pensa que sou louco/ (...) sou louco, o que posso fazer”? Talvez escutar Billie Holliday...