sábado, 29 de janeiro de 2011

São demais os perigos desta vida

Estava para atravessar a Avenida Deputado Esteves Rodrigues, sábado a noite, perto do Papaula, quando fui abraçado por trás. O perfume denunciava. Era Leya Bloodymary. Linda, como sempre, nos seus anos já passados. Leve, solta, com aquela voz de ternura.
Usava um vestido preto básico, leve e curto, sandálias altas. Uma mulher intrigante. Sabe que a distância entre o vício e a virtude é apenas uma dose a mais de uísque.
Me abraça forte, me beija como louca de ternura e me entrega um bilhetinho. Fala rápido de coisas e cousas, parece ter pressa. Difícil conversar com ela por causa das pausas, das reticências, dos silêncios. Desta vez, fala de dentro do coração. Que animação. É o clichê da vida.
“Leia depois... Dê uma bicota na Bianca”- e sumiu no meio daquela juventude, com toda sua juventura. Uma graça. A lua parecia lhe dizer: te amo!
Vou te contar, nem dá pra crer o que estava ali, naquelas mal traçadas linhas: “Lu, obrigado por me lembrar. E muito obrigado por não me revelar. M”.
Agora, fico encantado olhando distante no fundo do pomar a mangueira carregada de frutos rosados. Fico encantado olhando distante o infinito com o bilhete na mão. Descubro que somos amorosos, somos seresteiros, somos trabalhadores, somos amigos da vida.
Leya me lembra isso com tanta facilidade, com aquele corpinho frágil. Magra, parece Mirinha Maciel, tinha os mesmos sonhos de Mirinha, de se tornar juíza, mas de crimes contra a humanidade. Quais seriam estes crimes? Nem ela saberia relatar.
A vaca sagrada da terra de Gandhi me aparece por toda a semana, como um fantasma rondando a casa, o trabalho, os bares, as ruas.
Olha, não é nada disso embora eu não saiba dizer mais nada, mais nada além das coisas que sempre ficaram caladas. É até fácil de se entender. Acredito que ela só apareceu para dizer adeus, mas disse também “estou aí, a gente podia até fazer umas molecagens, sair por aí, fazer um álbum de fotografias” - já que ela gosta tanto. Só pra depois queimar e depois lembrar. Coisas que Leya me ensina. Ensinou-me. Me ensinará mais a frente.
Me veem lembranças, de quando um dia, no bar do João, na rua Dr. Santos, notei toda sua sensibilidade de tratar temas que, mais do que adolescentes, falavam do que sobra da adolescência pelo resto da vida. Como a vocação para amar errado ou a certeza de que não encaixa neste mundo. Hoje está tão raro encontrar alguém com a opinião pessoal formada – mesmo que esteja errada – sobre seja lá o que for. Leya Bloodymary sempre as teve. Sempre as tem.
Às vezes, a gente deixa de ser interessante. Passa a não ser convidado para encontros com amigos. Ai encontramos com um destes amigos na rua e ele diz “você está sumido”. Como se fôssemos o culpado.
Será que é isso que aconteceu naquele encontro perto do Papaula, com ela e eu?
A partir de um tempo na vida, a gente não tem mais preocupação com a forma física. Como Leya Bloodymary, também já fui considerado bonitinho, o que já não era tanto assim, mas foda-se se eu não for mais. To mais gordo, relaxado, já estive doente. Estou. Mas trato. A gente vai ficando mais velho e passa a entender que você não é porra nenhuma. E é tudo! Sou um projeto de escritor. Finito. Como tantos outros. Que lembra uma amiga distante num artigo e a encontra na avenida...
E Leya era feliz? Não sei. Eu era feliz? Não sei. Fui-o outrora agora, como ensina Ana Luisa Escorel... Quem era o mestre na delicadeza e fazia fábulas literárias sobre o vazio da existência a dois era François Truffaut, não eu.
Ultimamente baguncei meu coreto e pendi para o realismo – no que mantive uma única atitude firme: a de não ser mais tão otimista.
Leya pelo menos não é como meu amigo Edivaldo. Edivaldo ficava pensando na vida. Assim como ontem, na semana passada, no ano passado. Sempre pensando na vida. A esta altura ele já devia ter chegado a uma conclusão.
Leya me ensinou os ossos do ofício, o caminho do ofídio. Ela é pedra que não se consome. Leya apareceu na noite, numa avenida que gosta, sensual. Acredito que essa sensualidade faça parte de sua vida desde a infância, embora com os cabelos desgrenhados. Isto, apesar de eu a ter conhecido só quando fez seus 19 anos. E hoje, tantos anos depois, continua viva. Respirando, provocando todo mundo. Vive com prazer. Com ternura.
Leya, sei, ainda é bela e sedutora. Não sei como vive hoje, mas nos anos 1980 chegou a viver de empregos modestos, quase bicos. Morou em lugares insalubres, que enfeitava com desenhos que produzia e com os feitos pelos amigos nas mesas de bar. Com do Georgino Junior, Roberto Marques, meus. É, ela ainda tem alguns desenhos meus... Só ela e Tino.
Uma vez, descobri com meus bilongues o que Leya comia. Ai, ai, ai, mas deu uma melancolia...
Teve época que comeu sanduíche no almoço e jantar. Passou por um pequeno inferno. Era uma sonhadora. Sem dinheiro para comprar um remédio qualquer para dor de cabeça – ou ressaca -, fazia planos para conhecer Roberto Carlos. O que fez, quando ele esteve aqui, numa apresentação histórica no ginásio poliesportivo Tancredo Neves. Tirou fotos com ele e Paulo César Santiago no avião que os trouxe e os levou.
Lembro dela me contando que tinha uma amizade com um alien que viveu na casa vizinha a sua, na Pires e Albuquerque. Existia um barzinho na esquina, que o Sidney cruz adorava e não me deixa mentir. Às vezes nos dois, eu e Leya, e mais Elthomar Santoro Junior, sentávamos num murinho que tinha em frente à casa, fumávamos umzinho, dava uns tapas. Não chegava a ver a lua e o céu caindo como o Junior, mas passávamos perto. Elthomar pegava o violão e tocava suas canções, lindas como o tempo. Acredito que foi ela quem o inspirou na canção “Maria Aparecida”. Sei não, sei não... Houve só uma troca de nomes e lugares...
Leya quer escrever um livro sobre sua história de amor, mas tem medo de magoar as pessoas. Traz em si aquele não sei o que de promíscuo que desequilibra os homens. Ela que morou na Montes Claros idílica, distante, tem medo de acordar um dia e descobrir que não amou ninguém. Uma coisa eu sei: não tem aquela preguiça intelectual, típica da maioria das pessoas do mundo da cultura. O livro já deve estar pronto.
Tem alguma coisa melhor do que realizar um sonho sonhado durante muito tempo?

Nenhum comentário:

Postar um comentário