sexta-feira, 22 de abril de 2011

Sex in the Moc

Leya Bloodymary nunca usava calcinha. Era uma pureza de pessoa. Passou maus momentos quando estudava no Colégio São José, logo quando as meninas entraram no refugio dos meninos. Como gostava de escorregar no corrimão da escada, era a garota que todos queriam... Menos os irmãos maristas. Recebeu broncas de Irmão Ladislau. Também trabalhou certo tempo numa firma de tratores. Era a atração quando, após o almoço, se sentava numa mureta, com a saia curta. Os mecânicos não deixavam de passar a sua frente. E ela se divertia intimamente.
Uma vez, viajou para Londres, onde ficou quase um ano. Voltou dizendo ter conhecido um cara sensacional, que escrevia letras para Raul Seixas. Era um tal de Paulo Coelho. Disse que o namorou durante algum tempo, inclusive vivendo em sua casa. E junto com a esposa, Cissa. Todos juntos, numa cama só: ela, Paulo, Cissa e Peninha. Coisa da sua cabeça? Ninguém sabe.
Criativa, ousada e, particularmente, em paz com a vida, L.B. é assim, com aquela cor de jambo e pecado. É o personagem do meu filme de memórias que o vento levou e o tempo traz. Também gosta de magia, alquimia e astrologia. Não nesta ordem. Mas antigamente queria manipular os astrolábios, ler as estrelas, dominar a natureza, decifrar segredos.
Não sei por que, sempre a encontro pelas ruas. Ontem mesmo, passou pela Santos Dumont. Está mais alegre agora, e me conta ou relembra casos do passado. Afinal, ela é uma mulher aventureira, uma mulher do mundo.
A poucos dias, fui à casa de L.B. Naquele local, ruídos dos ônibus, a gritaria das pessoas na rua, o desacerto arquitetônico da área central, nada a faz desconcentrar. Me recebeu sorrindo, aquele sorriso travesso. Ali há um cheiro no ar, roupas usadas penduradas numa bicicleta ergométrica, latas de tinta abertas, uma tela meio que pintada, meio que borrada. Será que ela agora virou artista, penso, comigo mesmo. As portas estão escritas a caneta. Na do quarto, está a letra de “Amor, meu grande amor”. Na do banheiro, Joana Francesa e Ne me quitte pas.
Numa prateleira, livros. Muitos. Alguns títulos me chamam a atenção: “120 Dias de Sodoma”, do Marquês de Sade, “O Doce Veneno do Escorpião”, de Raquel Pacheco... tem Henry Miller, Cassandra Rios e a coleção de Carlos Zéfiro. Tem Charles Baudelaire e Paulo Coelho, Augusto José Vieira Neto e Carlos Drummond de Andrade. Me interesso por Mulheres de Charles Bukowski. Pego e abro numa página qualquer. Leya abre a janela e o sol de fim de tarde do verão montes-clarino entra, trazendo vida àquela parte da quitinete. Numa mesa, reparo uma faca e casca de laranja, já seca. Ao lado, um enorme dicionário Aurélio. Diz ser ali seu refúgio, onde conversa com as almas, medita, sonha com tempos antigos e aqueles que têm pela frente. E ama. “Tem um velho louco e safado aqui do lado”, diz, com voz carinhosa. “Ele bebe demais!”. “E você?”, ouso perguntar. “Sei lá. Uma garrafa de vinho, algumas cervejas, um uisque...” O cosmopolita passatempo etílico ainda continua, quando vai ao bar do Joaquim. Quinta no Quincas, doces lembranças. Toca música clássica. Ravel. Só podia. Revistas sobre uma poltrona vermelha. No chão, ao lado da cama, “Hustler”. “É um imã para os homens”, diz com o sorriso maroto. E olha que ela foi educada segundo as severas regras protestantes. E tinha um pai comunista.
Hoje com seus anos um pouco passados, ainda canta “não acredite em ninguém com mais de 30 anos”, enquanto toma banho. Seus olhos, quando canta, tem o olhar de um azul profundo, o rostinho de anjo. Enganador. Não me pergunte como sei. Ela continua livre, inteligente, ousada, verdadeira. E nos transfere sua paz. Seu amor.
Uma vez, L.B. resolveu usar uma cabeleira fake e falar com uma voz monótona. Neste dia, ela teria um encontro lésbico. Nunca falou o que rolou. Mas rolou, pois sua cara, no outro dia, era de traquinagens. Agora, anos depois, pergunto como foi. Responde apenas que M.T. conhecia aquela palavra que, quando pronunciada, faz com que uma mulher apanhe uma flor e a coloque no cabelo. Nada mais foi dito. Nada mais precisa ser. Para bom entendedor...
Leya é uma filósofa-gata. Sem tradução. Vem de uma família de esquerda. Seu pai militou no Partidão, e um tio foi preso pela ditadura. Namorou um guerrilheiro de araque, destes que se vê ainda hoje falando da luta armada contra a ditadura, sem nunca ter apanhado uma arma. Talvez apenas tenha visto, de longe, a capa do Livro Vermelho do Mao Tsé-Tung.
Não se envolveu com atividades estudantis na faculdade. Namorou um holandês seis anos mais velho, que lhe deu uma visão da vida européia. A ensinou a falar francês e inglês, a vestir, a comer, a ter certa sofisticação. Com ele descobriu sua sexualidade e seu medo da Aids.
Na nossa conversa, lembra que se esbaldou durante anos no bloco Biô e Salomé, frequentou o Bar Sibéria, na esquina da Dr. Veloso com Presidente Vargas, só para beber vodca com coca, bater papo com Virgílio de Paula e Biô Lopes. E conversar com “Seu” Luis, falando sobre a época dos picolés de groselha, vermelhos, redondos. Seria provocação? Fala sobre Vicentinho da Pavisan, de Toninho, irmão de Carlinhos e Dequinha, e das guloseimas do bar dos japoneses Manoel e Joaquim, no boteco da Dr. Veloso com Tiradentes.
Me vem à memória que Leya Bloodymary tinha uma estabilidade emocional que dependia tanto de uma relação sólida, de um homem que a ajudasse a enfrentar as tempestades da alma, como de uma cachacola na esquina. Às vezes, entrava em depressão, ficava melancólica.
Nunca lhe faltaram (nem faltam) homens, é bom acentuar. Ela suga suas energias. Às vezes trepava (trepa) muito. É quase uma mulher-vampiro para seus homens. Uma predadora erótica? Ah! Como se lembra de Lucrezia Borgia... Naquele quarto, os gemidos, os sussurros, onomatopeias... Ai! Laralarilás. Gosta de brincar de gata e rato. Uma loba no cio, uivando pra lua. De mel! Bem lembrou Jorginho Santos na canção Safari. Foi onde o leite e o deleite se encontraram.
Na sala, ela coloca Caetano. O som de “Sozinho” enche o ambiente. Sentada no sofá ao meu lado se encosta, enrosca, parece pedir proteção. Usa minissaia, os cabelos estão molhados do banho, desgrenhados, a boca rósea e um par de pernas suculentas. Se põe a tecer a crônica sexual da vida alheia – e própria. “Já escutou Estrela Reluzente, do Zé da Gota?”, pergunta. “Não!” “Aqueles versos foram feitos para mim”, e canta “somos peças do mesmo jogo, somos amantes da mesma ilusão”. Cantarola quanto tempo leva para aprender que uma flor tem vida ao nascer. Diz estar viva, ressuscitada, há movimento em suas carnes, os sonhos esquecidos estão a sua volta e os desejos proibidos aparecem na superfície de sua pele. “Será que estas suas mãos ainda sabem abraçar e acariciar meu corpo”, interroga.
Leya Continua sem conseguir segurar um afeto. Continua um personagem dramático. Continua com pêlos tremendo ao vento ateu. “Tiau, Bodanzky!”, digo, num sussurro, saindo devagarzinho. Ela parece dormir com as mesmas pausas, reticências e silêncios.
Lá fora, olho e revejo o Cine Montes Claros. Da Praça Dr. Carlos vem o som: Será por quê? Será por quê? Será por quê? Nem o senhor porquê sabe responder.
Ah, Santoro...!

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