terça-feira, 6 de setembro de 2011

E.T. de pé de serra

Beira Mar Novo, fui só eu é quem cantei
Ô Beira mar adeus dona, adeus riacho de areia.

Eu não moro mais aqui, nem aqui quero morar, ô beira mar adeus dona, adeus riacho de areia
Moro na casca da lima, no caroço do juá, ô beira mar, adeus dona, adeus riacho de areia
Adeus adeus toma Deus, que eu já vou me embora

O folder da audição da Musicalização II distribuído naquela Quarta de Finados, pelo Conservatório de Música Lorenzo Fernândez, dizia que Encantos de Minas, o show a ser apresentado pelos nossos filhos, iria despertar em cada um de nós a riqueza de nossa terra, nossa gente, nossa arte.
Em mim, despertou mais do que uma simples viagem pelo mundo musical mineiro poderia.
Canções de Juquita Queiroz, Marcelo Godoy, Cori Gonzaga, Milton Nascimento e Maria Lira Marques, principalmente ela, nos carregou por outros tempos.
Digo Maria Lira porque seu nome não constava do folder. Mas é dela e do Coral de Trovadores do Vale (e do Frei Chico (Francisco Van Der Poel) a adaptação folclórica de Riacho de Areia, mais conhecida como “Canto Beira Mar”, que nosso grande Luis de Paula escutava, ainda menino, quase cem anos atrás, lá em Várzea da Palma.
Conheci “Riacho de Areia” numa tarde do outono de 1983, quando por aqui apareceu o caminhador Dércio Marques, pessoinha que ama a liberdade.
Vinte e tantos anos já se passaram. Era uma tarde gostosa, como são gostosas as tardes de outono em nossa cidade. Ele todo de branco, vindo de Uberlândia, indo para Vitória da Conquista. Pousou aqui como uma borboleta, não sei por que me procurou (talvez por estar na Rádio Montes Claros, a primeira FM da cidade), não o conhecia direito, apenas da sua apresentação na televisão defendendo música de Elomar num festival da Globo. E saímos pela cidade. Não houve show, não houve nada, apenas papo e canções ao vento, na tarde de outono de 1983, no barzinho Stalo, do Celsinho, lá no bairro do Melo. E por lá ficamos entrando a noite, entre uma canção e outra, entre um papo e outro, entre um cigarro e outro. Veio a madrugada e ele se foi...

Eu morava no fundo d’água e não sei quando voltarei, eu sou canoeiro, vou remando minha canoa, lá no poço do pesqueiro, ô beira mar, adeus dona, adeus riacho de areia

O cantor, compositor, instrumentista, pesquisador da cultura popular, produtor - de discos de Elomar ou de Diana Pequeno, aqueles primeiros, que eram excelente -, Dercio é figura importantíssima da cultura brasileira, com atuação sólida nos terrenos da pesquisa e do resgate das culturas interioranas, das linguagens da viola, dos cantos de trabalho e devoção.
Mesmo não tendo alcançado grandes sucessos de massa, tornou-se figura de referência para estudiosos da cultura popular e para os que a admiram.
Seus discos são independentes e permanecem combinando, como inevitavelmente seria, as questões ecológicas com aquelas que dizem respeito à diversidade das expressões culturais brasileiras.
Violeiro e cantador mineiro, viaja ainda hoje por todo o Brasil apresentando seu trabalho e coletando material sobre a cultura popular brasileira, como já fazia nas décadas de 60 e 70, quando viajou pela América Latina divulgando músicas brasileiras.
Seu primeiro disco foi lançado em 1977, pelo selo Marcus Pereira, com o título de “Terra, vento, caminho”, e relançado em CD em 2000 pela Kuarup. Em 1979, lançou pela Copacabana, "Canto forte - Coro da primavera".
Estou escutando agora, seis da manhã dessa sexta-feira - solzinho tímido de outono batendo na janela, canto do Bem-te-vi, de pássaros diversos, e do galo, este, atrasado -, o Long Player (isso mesmo, o antigo LP) de Fulejo. E viajando pelo nosso universo que está acabando.
Sigo nesta manhã, relembrando histórias de Lamartine Babo (Serra da Boa Esperança), coisas simples de Elpídio dos Santos (Casinha Branca - que o Grupo Raízes, com Ângela, marcou tão bem -, e Ranchinho Brasileiro), Elomar Figueira de Melo (Pinhão na Amarração) e César Teixeira (Namorada do Cangaço, também gravada por Tino Gomes no seu terceiro LP). Na simplicidade e gostosura da voz e sons que o Dercio Marques nos proporciona. Só quem conhece seu trabalho chega a tranquilidade de dizer que a nossa música vai muito bem, obrigado. Apesar de tudo.

Vô desceno rio abaixo, num canoa furada, ô beira mar, adeus dona, adeus riacho de areia
Arriscando minha vida, pruma coisinha de nada, ô beira mar adeus dona, adeus riacho de areia
Adeus adeus, toma Deus, que eu já vou me embora...

Julinho Bittencourt diz que Dercio Marques é uma lenda para poucos. Acerta em cheio. É um dos artistas mais inusitados deste país tão criativo. Viaja por todo o canto onde houver um canto para aprender ou mostrar. É uma verdadeira enciclopédia viva da cultura popular brasileira. Quando resolve gravar, chama todos os amigos que estiverem ao alcance, incluindo aí as crianças e os passarinhos.
Faz festas do povo e com o povo, não simplesmente discos. É um trovador errante, com uma visão própria de construção de carreira. Não tem nenhum sucesso de rádio ou televisão. Mas lá se vão muitos anos deste mundão de Meu Deus que ele funciona como um pulmão que ajuda a soprar canções direto de sua nascente. Tem uma voz belíssima que sempre se soma as festas e reisados. Canta com a nossa voz, a voz da nossa gente.
Dércio tem uma porção de discos gravados, sempre por produtoras independentes ou coisa parecida. Não grava com regularidade, o que torna cada lançamento seu um acontecimento para os interessados, que, levando-se em conta o mercado fonográfico, não são poucos e estão espalhados por todo canto onde ele costuma passar.
Grande interprete de Elomar, grande interprete da música raiz, Dercio fez tudo e muito fará. Tem desde disco infantil (Anjos da Terra e Monjolear), passando pelo meu predileto (Fulejo), indo ao magnífico “Segredos Vegetais” e “Cantigas de Abraçar” que, como ele próprio diz, é um almanaque musical (conta com participações especiais de Elomar, Xangai, João Omar, Saulo Laranjeira, Renato Teixeira, Doroty Marques e outros tantos interpretes e compositores). Em 1996 foi indicado para o prêmio Sharp de Melhor Disco Infantil com "Monjolear", gravado em Uberlândia, com 240 crianças. Espelho d'Água; Sons e Sentimentos da Natureza é uma coleção de 15 canções que têm a água como tema, algumas escritas para o disco (por compositores como Xangai, Nonato Luiz, Luli e Lucina), e outras recolhidas das tradições populares e folclóricas.
Mineiro, Dercio Marques é filho de uma gaúcha do Rio Grande e de um uruguaio. Continua ainda hoje construindo sua arte e suas manhas a partir dos interiores do Brasil. De lugares as vezes afastados, que ainda conseguem, a despeito da voracidade característica da indústria cultural, celebrar manifestações típicas da cultura popular brasileira. Representa essa vertente de artistas - em geral alijados da mídia grande (exceção quando morrem, exemplo recente e acabado o caso da violeira Helena Meireles - cuja notícia do falecimento rendeu bons minutos no Jornal Nacional, da Globo). A essa inclinação à cultura popular e imaterial, Dércio Marques deve a sua verve de pesquisador.
Antes de terminar, é bom registrar que ele percorreu, ao lado do também pesquisador e produtor musical Marcus Pereira, diversos pontos do país e do continente latino-americano. Dessa incursão quase científica descobriram raridades como cantigas, sons e costumes que renderam a célebre coleção de discos do selo Marcus Pereira - que alguns musicólogos defendem como o mais importante projeto fonográfico realizado até hoje no país. Gravou de Cartola (os dois primeiros) a Elomar, da Orquestra Armorial - regida pelo maestro e compositor Guerra Peixe - e Banda de Pífanos de Caruaru ao experimentalismo de Walter Smetak. Verdadeiras raridades que hoje não encontramos mais.
Seu lado ecológico pode ser notado quando de sua apresentação no Festival Folclórico, das Festas de Agosto, em 2009. Ao chegar ao palco, viu que para ser montado haviam cortado alguns galhos de uma mangueira, em frente ao Banco do Brasil, ali, no iniciozinho da Gonçalves Figueiredo. Reclamou. Apanhou algumas poucas mangas que estavam no chão e as levou para o camarim. O destino delas, não sei. Mas da reclamação, ficou o exemplo.

Rio abaixo rio acima, tudo isso já andei ô beira mar adeus dona...
Procurando amor de longe que o de perto já deixei ô beira mar adeus dona, adeus riacho de areia
Adeus adeus, toma Deus, que eu já vou me embora...

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