terça-feira, 6 de setembro de 2011

Havia um sonho em cada estrada...

Olhando os livros na vitrine de Miguel de seu Ducho, eis a surpresa de encontrar o CD de Luis Guedes & Thomas Roth. Com seus dois vinis. Coisa rara! Eu ainda os tenho (os elepês) guardado em casa e no coração. Afinal, havia um sonho em cada estrela e, em cada rua, uma lua, como nos lembrava Luiz Guedes em “Bons Tempos”, uma das suas parcerias mais tristes com Thomas Roth. Naquele tempo, em que a doença ainda não havia manifestado em Lulu, ele cantava amigos todo tempo, pois havia tempo e havia amigos. Eram outros os perigos.
Ser livre era sagrado, era direito, era um jogo seguro. Mas tudo tem seu tempo certo. Carlos Drummond de Andrade já teria escrito que havia jardins, havia manhãs naquele tempo. Lembro quando o montes-clarense Luis Guedes, Lulu, voltou para sua cidade quando já não havia jardins, manhãs, lua em cada rua. Doente, fazia seu tratamento calado. O primo Beto chegou a se manifestar em um show solidário, para o então solitário Lulu. Os tempos dos “Heremitas” havia passado. O cine teatro Fátima tinha virado casa de jogo, depois casas Bahia. As tardes de domingo, no Automóvel Clube, haviam ficado para outro tempo.
Foi assim que Lulu virou estrela no céu, como dizem os índios quando alguém morre. Lembro ainda hoje: desencantou-se numa terça-feira, em Belo Horizonte. Um dia depois, na sua terra, onde seu corpo passou as últimas horas na galeria que leva o nome do seu tio, Godofredo Guedes, descia ao jazigo, sem o som dos “Heremitas”. Era enterrado quase despercebido pela cidade que, lá fora, vira, pouco a pouco, metrópole, e não tem tempo para os filhos teus que não fogem a luta. E o povo, pouco a pouco, vai esquecendo... Mas havia um sonho em cada estrada.
Por meses a fio, em 1981, uma canção não desgrudava dos rádios. Era “Canção de Verão”, uma celebração da estação quente que estava por vir e, sobretudo, uma apologia à vida, tornada famosa pelo Roupa Nova. Foi a primeira vez que Luiz Guedes - com a parceira de Thomas Roth - saboreou a fama. “Canção de Verão” tornou-se uma das músicas mais executadas do país, com aquele refrão instantâneamente reconhecível, aquela melodia correta e uma letra direta, arrematando de maneira irreversível a popularização da dupla de compositores. Esse processo já havia sido iniciado por “Nova Estação”, música com a qual concorreu ao MPB-80 e que foi a de maior execução pós-festival. Acabou sendo regravada por Elis Regina. Eles também alimentaram Emílio Santiago, que gravou “Mais uma Vez”.
Mas estancava ali, naquele sol de verão de 1981, o momento em que Lulu e Roth utilizavam terceiros como veículo de sua música costurada cuidadosamente com melodias e harmonias ricas, de letra simples na medida exata, de vocalises borjudos. Faltava à dupla gravar um disco seu, onde expusessem o terreno de ação da arte que emprestavam a outros em sua plenitude.
“Canto Matinal” foi o compacto de 1981, com arranjo de Wagner Tiso, e “Como Nunca”, que recebeu o arranjo de Cláudio Burnier. Esta havia sido gravada no álbum “Sol de Primavera”, pelo primo Beto Guedes. Mas o compacto não detonou satisfatoriamente a curiosidade do público. Lulu e Roth já eram, de fato e direito, prediletos dos intérpretes e, como tal, ressentiam-se da falta de exposição maior ao público. Por isso, chegou “Extra”, que remediou o problema. Foi um disco onde ficou bem clara a expertise da dupla para garimpar melodias tão ricas quanto suas harmonias, ao mesmo tempo fáceis de guardar e de nuances que se alteram entre o dramático, o romântico e o celebratório.
Dele, outros sonhos se passaram. E num país em que, geralmente, os compositores excepcionais costumam virar intérpretes medíocres, Luis Guedes e Thomas Roth foram gemas raras, odaras. O que, a bem da verdade, não chega a ser uma qualidade inesperada, traçados os precedentes da dupla: a teimosia e a incansabilidade sempre foram suas características.
Mas passou-se o tempo, como o tempo sempre passa. No início da década de 1990, Lulu retornou à Montes Claros. Da infância, a lembrança da ZYD-7, da qual era ouvinte assíduo. Agora, novas emissoras no ar, novas tendências, o progresso.
Lulu se acostumou à música desde cedo, fosse ela proveniente da imponente presença de Luiz Gonzaga - que o pai o levou para ver ao vivo, certa vez - das incontáveis serenatas que presenciou, vendo os regionais amadores em que tocavam o pai e o tio, ou das festas de rua, como folias de rei, quadrilhas juninas e festas de agosto. Ele adorava música de acordeon.
Porém, só bem mais tarde consideraria uma carreira em música, no momento em que conheceu Adson, garoto como ele, que dividia seus dias entre o trabalho numa mercearia e uma incurável paixão pelos Beatles. Foi o estopim de tudo. Os dois tornaram-se inseparáveis e a amizade gerou mais de 100 músicas, todas inéditas. Também foi a conta para que Lulu comprasse uma guitarra Phelpa e alistasse no grupo de baile “Os Heremitas”, especialistas em covers de sucessos do grupo inglês - quem mais? - Herman’s Hermits. Inchava o ego de Lulu, em tenros 16 anos, ver multidões ovacionando sua versão de “Listen, People”.
Pressionado pela família, viu-se obrigado a tentar o vestibular - primeiro, para Direito, depois, para Administração de Empresas - em São Paulo, cidade que essa parte da família Guedes havia adotado ao deixa Belo Horizonte para acompanhar a filha mais velha, universitária.
Distante de Adson, o único a seduzí-lo para longe das universidades e de volta à música era o primo Beto que, ainda assim, permanecera em Beagá. Foi quando, empregado a contragosto numa empresa de mudanças, Lulu conheceu Thomas Roth, filho de pais alemães, carioca transplantado ainda bebê para a terra da garoa. Mas o primeiro disco da dupla - ou mesmo uma apresentação conjunta - custou acontecer.
Thomas chegou primeiro ao estúdio, gravando uma faixa do álbum Mambembe, do qual participaram ainda os novatos Ednardo, Amelinha, Belchior e Cirino. Depois, veio “Manchetes” e “Quero”. Elis Regina ouviu esta última, gostou e a incluiu no antológico “Falso Brilhante”. Como dupla, o início foi no palco do MPB-80, com “Nova Estação”. Daí pra cá, você já sabe...

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