terça-feira, 6 de setembro de 2011

Há um ladrão na janela, onde antes estava Carolina

Ainda estou tentando desvendar o que é Montes Claros, minha terra.
Primeiro, é necessário saber que Montes Claros são muitas. Dentre uma.
Só de aniversário, comemora três no ano:
12 de Abril, quando Antônio Gonçalves Figueira obteve por Alvará a sesmaria da fazenda dos Montes Claros. Já fizemos 300 anos.
3 de Julho, quando a Vila de Montes Claros de Formigas foi elevada à categoria de Cidade. Já passamos dos 150 anos.
E 16 de Outubro, quando foi instalada a Vila de Montes Claros de Formigas, e emancipada administrativa e politicamente, ganhando vida própria. Os 175 anos ficaram para trás.
Segundo, é necessário dizer que Montes Claros é a melhor cidade do mundo. Depois, bem depois mesmo, vem Paris. E aí sim, Janaúba. Como não disse Otto Lara Rezende (mas poderia), Montes Claros está onde sempre esteve.
Nem tanto tempo assim se passou, e as coisas mudaram tanto por aqui. No Todos os Santos mesmo, tinha uma várzea. Uma não, várias várzeas, já que os santos são tantos. E o rio Pai João, onde nadei com amigos e meninos piaba, já não é mais Pai. Nem... rio!
Onde hoje é a Unimontes, quantas vezes atolei meu pé na lama... Quantas vezes nadamos naquela piscina da antiga fazenda de Dr. Santos, onde anos depois os japoneses Manoel e Joaquim fizeram, ao lado, o Categute. E a água acumulada ali, era de chuva. Tínhamos campinhos de futebol naquelas várzeas do hoje Todos os Santos. Perto da casa de José Mário de Araújo - comerciante de casos e causos vários -, ficava o campinho oficial, que só acabou porque foi construído o Orbis Clube. Por ali, além da meninada, passaram alguns mais velhos novos: Carlão, Zé Quintiliano, Carlos Curiango, Rays, Zé César Vasconcelos, Marquinho Loiro, Márcio Hiram, Jerônimo da Padaria. E os meninos de seu Mário. Todos cheiinhos, como ele. O DNH estava na cara. Quantos gols fizeram ali. Quantas peladas, quantos dedões quebrados. Quantas bicudas dadas em tantas bolas.
Eu não sou um cara tão antigo assim não. Posso até parecer. Ta certo, era final dos anos de 1960. O campo dos seminaristas, na Irmã Beata, ainda era campo nosso, embora diminuindo pouco a pouco. Se as chuvas enchessem a piscina do seminário, na Coronel Prates, estávamos lá a nadar, sem importar em pegar doença ou não. Se o tempo não era de chuva, a piscina estava seca ou com água verde demais, era então hora de futebol sobre os paralelepípedos da Coronel Prates. Braço no gesso, dente partido, joelho ralado, cabeça lascada... dedão sangramdo! Êta coisa boa era ser criança naquele tempo!
Hoje, ficam enfurnados em casa, com seus playstations, nintendo, buscas na internet. Não sobem no pé de manga, não chupam a manga e deixa escorrer pelo canto da boca, nem andam de bicicleta por medo.
Já gostei muito de passear a pé pela cidade, alheio a carros, pressa ou medo de assalto. Andava a pé ou de bicicleta, andava pelo São Judas, São João, pela Malhada. Ia pro lado do parque Milton Prates. Acampava onde hoje está o parque do Sapucaia. A gente seguia uma trilha, subia pelo rio, tomava banho de cachoeira. É, existia cachoeira naquele tempo. Existia a ‘“Lajinha”, “Melo”, “Carrapatos”, onde um ou outro ainda levava uma menina da zona.
Existiam zonas naquele tempo, com donas amantes e mal amadas. Quanta gente não teve sua iniciação naquelas mulheres, algumas gordas, de peitos e quadris largos, que mexiam e até fingiam gozar. Ainda era tempo, naquele tempo, de ir para o Colégio São José passando ao lado da zona da Rua Padre Augusto. Os motores da Cemig trabalham a óleo diesel. E tinha gente que via fantasmas, ao meio-dia, andando pelo local onde antes existia um cemitério.
Como Montes Claros já teve zona. E putas!
O Wanderlino Arruda lembra, bem lembrado, que, nos anos do cassino, do Clube Minas Gerais, eram 3.000 as meninas. Fichadas. O tempo da ficha passou. Mas elas continuaram existindo. Hoje, devem ser bem mais. Só que, a maioria, vive ao nosso lado, no dia-a-dia. Poucas são aquelas que ainda ficam na zona. São as modernidades...
Quando a cidade completou seus 150 (175? 300?) anos da cidade, houve lista de homenagem. Mas faltou a lista das 150 putas. Ou donas de puteiros. Ali poderiam estar Leobina, Etelvina, Maria de Belo, Maria Cudeferro.
Também Anália, Sara Batalhão, Rosinha, Verona, Petró (Petrolina), Roxa (dona Eudóxia), Joana do Esplanada, Jésus e Maria Comodoro.
Na lista não podiam faltar Zinha, Belinha Gorda, Irene, Vera da Vila Ipiranga, Edna, Almira, Rita do Ceará, Terezinha do Manchester, Joana e Kássia Loura.
E Maria Flor de Maio, com sua ternura? E Tiana, generosa, inteligente, articulada? Abrindo caminho, ainda hoje, para a puta cidadã.
Foram esquecidas naquele ano, de tantas comemorações. Tão esquecidas que, dia destes, no gabinete do prefeito, durante a solenidade dos 175 anos da cidade, o escritor Wanderlino Arruda lembrou do entorno da praça da estação ferroviária. Lembrou de tudo, da cultura, da vivência, da sapiência das pessoas. Menos das putas que ali transitam diariamente. E ainda passam...
Tantas e tontas, frequentam os bares da região e até fazem ponto no forrozão às quintas e sábados. Os antigos hotéis ali viraram o quê? Motéis? Precisam sobreviver...
A escritora Raquel Mendonça, feminista, não deve gostar muito quando se toca nisso. Mas deve gostar quando se defende a mulher, seja qual a profissão escolhida. Sim, Raquel, a cidade continua tendo suas putas. De preferência, são poucas. Embora tantas e tontas. Reconhecidas pelo Ministério do Trabalho. No Censo do IBGE de 2010, com certeza, foram contadas. Saberemos quantas putas temos. Embora muitas, principalmente estas que andam ao nosso lado, queiram responder e vão dizer que são de outra profissão. E puta, Raquel, é uma das palavras mais sonoras, vigorosas, malditas e belas da nossa língua. O Houaiss mostra que ela é rica em sinônimos – 127 ao todo. Lembra Roberto Pompeu de Toledo, que ela reina com autoridade para expressar o que expressa.
Por que não homenageá-las nesta Montes Claros que perde o vínculo com seu passado? Nesses novos tempos que começam?
Bom lembrar que ser mulher “da vida” é bem melhor do que ser mulher “da morte”. Ainda mais hoje, que nossa cidade não se tem lugar nem para amarrar nosso burro! Montes Claros paga alto o preço de sua expansão. Inchada, virou a cidade dos desafios. Nos anos 1960, éramos pouco mais 50 mil almas. Hoje, estamos chegando aos 400 mil. Um assombro para quem, como eu, relembra a pacata cidade com bate-papos animados nas calçadas, serestas sob sacadas, gente subindo e descendo a Dr. Santos nas noites que continuam cada vez mais quentes de primavera. E nenhuma favela, é bom lembrar.
Como mostra a Gal Bernardo naquela apresentação que me mandou, a pé ou de bicicleta, íamos à casa dos nossos amigos, mesmo que morassem distantes de nossa casa. Entrávamos sem bater e íamos brincar. Faz isso hoje! A vida real é diferente nos tempos de agora. Na vida real de agora, quando muito, há um assassino triste e doente de idolatria que espera nas sombras o objeto do seu amor torto para lhe dar uma dúbia e dolorosa morte.
Há um traficante na esquina, onde deveria haver um grupo de amigos e um violão.
Há um ladrão na janela, onde antes estava Carolina, e ainda se via a banda passar.
Onde Peter Pan saía voando, ouve-se um tiro, um grito, um desabafo.
Há um choro incontido, embora poucos percebam.
Às vezes é patético o outono de uma cidade. Embora saibamos que cidades não são como nós. Não têm outonos.
Às vezes é bonito. A sobrevivência é uma arte, e temos quem amá-la.
Qualquer que seja o pesadelo que tenhamos, nele sempre representamos um papel, sempre somos protagonistas, somos alguém.
Durante a noite, o deserdado triunfa.
Se os maus sonhos fossem suprimidos, haveria revolução em série.
O mundo não é feito de novo. Pensar nisso como uma promessa é o que alimenta o espírito e faz nascer o futuro. Mas a ironia é que a gente só vê isso quando já está muito longe.

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