domingo, 20 de maio de 2012

A fazenda Quebradas foi um estado de espírito

Quais foram os melhores anos da nossa vida? O ano chega ao fim, mas tudo recomeça no outro dia. Toda vez que chega o fim de ano somos invadidos pela certeza de que nossa vida será melhor. É apenas um pensamento mágico. Mas a gente tem que acreditar na esperança. Pedro Veloso tinha uma fazenda, a Quebradas, onde se ensinava mais do que o be-a-bá. Lá, uma geração montes-clarina aprendeu o viver, o dominus domínio, os juros além... Lá, vivemos com tranquilidade e alegria a nossa adolescência. Eu, um pouco atrasado, consegui participar de algumas reuniões que se realizavam aos domingos, com pais, mães, filhos, famílias, e espíritos de porco. Um destes espíritos de porco era justamente eu, com aquele sorriso ingênuo e franco de um rapaz moço encantado para as aprendizagens da vida. Tantos anos depois – foi na década de 1960, inicio de 1970 – ainda lembro vivo o fogo que acendia no coração aquelas músicas que todos cantavam a noite, com luar, vagalumes voando, a fogueira, faíscas na escuridão do céu, o friozinho gostoso e a vontade de estar mais abraçado a alguma das meninas que estavam ao lado, muitas exalando o perfume do amor. Ainda não são quatro da manhã, e meu pai me chama: - Filho, veste a roupa, que o dia já vem. E íamos para o novo mercado central, na Rua Coronel Joaquim Costa, esperar as coisas que vinham da Quebradas. E que coisas! Verduras, rapaduras cerentas, ovos, frutas, feijão novo, queijos fresco e curado, requeijões – e eu me lembrava do requeijão quente, servido nas tardes de domingo, doces tardes de domingo. O caminhãozinho chegava e estava escuro ainda. Ali, eu e meu pai. Esperando! Depois, é esperar o dia seguinte para, bem cedo ainda, ir em direção a São João da Vereda e Coração de Jesus, um caminho distante, onde hei de encontrar toda a sorte de amigos – finge que a vida é este caminho. Foi assim durante muitos anos, todos os sábados e domingos. E ali, naquela fazenda, aprendemos com os outros, aquilo que nem pensávamos que existiria: ouvimos histórias, vimos fantasmas, rimos de piadas bestas, conhecemos mais da vida, montamos cavalos, nadamos no riacho - lembro-me com saudades dos banhos de córrego, ao fundo da casa grande, dos meus tempos de criança - e, principalmente, ali conhecemos a vida e o aprendizado de sê sincero, reto e claro. A seresta, sonora, sereno, garoava enquanto eu chegava a dormir no colo da minha mãe naquela varanda enorme para meus olhos de então. E ela, a seresta, minha mãe, ficava tão grudada em mim, ainda depois de todos estes anos, agnus sei que sou também. A Fazenda Quebradas foi um estado de espírito onde se respirava a simplicidade. Hoje, dói ver seu estado de depredação. Dói saber que por lá não existe mais a prosa solta. O gole de cachaça. Da cachaça feita por Pedro Veloso. Ou de licor. Não existe mais o sentimento de fraternidade que Pedro e Arinha mantinham e nos ensinaram. Não existe mais a mesa posta aos domingos, onde além de agradar ao paladar, se partilhavam alegrias e tristezas, sonhos e nostalgia, naquelas conversas tão espichadas quanto ladainha de igreja. Nelas, até as frases eram sinuosas e delicadas. Como as curvas das serras que cercam o local. Não existe mais a fartura da comida, do angu, do tutu de feijão, o frango ao molho pardo com ora-pro-nóbis, a carne serenada assada, arroz colorido com urucum. Eram tantas delícias. Ai, meu Deus, que coisa boa! O doce de figo, de laranja, de limão. O doce de leite, pêssego. A goiabada. Aquele excesso de doçura. E se tivesse um mau súbito? Arinha conhecia as plantas e ervas do campo. O raminho. A folha. A flor. A raiz. O remédio para todos os males. Rosa Branca para os olhos. Amarelinha pra picada de escorpião. Chá de Velame ou Quina-Branca, para dores intestinais. Pau Terra, Folha de Laranjeira, Murta, Flor de Sabugueiro, Jurubeba, Marcela. Para tiriça, chá de Assafrão. Ipê-roxo pra rouquidão. E vó Mariinha ensinava que sumo de Gameleira, colhido na Lua minguante, faz menina pegar peito e crescer pêlos nas coisas. Pra se casar mais cedo! Tudo está contido em tudo. Grudado em mim até hoje estão os momentos gostosos ao lado de Pedro, Arinha, meus irmãos, meus pais, meus amigos e até os inimigos - que passavam os domingos na Quebradas. No terreiro da fazenda existe um dia certo para o sonho. Era aquele. E sempre o próximo domingo. Vejo na foto da sala da casa de Ita, meu pai e minha mãe no jardim da entrada da fazenda. Tantas rosas, quantas flores. Minha mãe e meu pai, na mocidade da velhice. Junto a eles me sentia no céu. E ali, na Quebradas, estava o paraíso com sua serra, seu rio, seu casarão. Laranjeiras, pitangueiras e goiabeiras no pomar. Caju, cajá-manga, curió e sabiá. E os coqueiros ao longe, balançando ao vento. Hoje, parece dezembro de um ano dourado. Parece bolero. Ah! Hoje é dezembro de um ano dourado. Ai ai ai que coisa louca. Ai, meu Deus, que coisa boa! Hoje, entretanto, fico triste que a história esteja sendo esquecida. Hoje, não existe mais cavalo e vaca pastando sóbrios no jardim. Nem preto velho contando seus segredos, que na gente já se apagou. Não existe seresta, canção, festa no ar, nem um bule velho no borralho, em cima do fogão. Não existe a jardineira que passava apitando, nem o carro de boi, cantando como um órgão, ou a flor estacionada na janela. Nem mesmo passarinhos balangandançando com a cabeça. Na rádio Unimontes toca When I’m Sixty-Four, dos Beatles. “Quando eu ficar velho, perdendo meus cabelos / Você ainda vai me mandar um cartão de namorados / Saudações de aniversário, uma garrafa de vinho / No domingo de manhã vamos dar um passeio / Cuidar do jardim, enterrando as ervas-daninhas / Quem pode pedir mais / Você ainda vai precisar de mim / Você ainda vai me alimentar, / Quando eu tiver sessenta e quatro anos? Bem ensinou Tom Jobim: quem não sabe o que é saudade/ não conhece este dilema/ não provou deste veneno/ quem nunca teve uma morena. Saudade é dentro da gente: um dia de sol com chuva. Vai-se a chuva, vem o sol. Vêem e vão. O tempo fica!

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