domingo, 20 de maio de 2012

Um olhar pelo retrovisor da memória

Ligam-me para dizer que estou muito saudosista. Que devo estar muito triste. Pode ser porque roubaram o meu Buda – que havia roubado do Rays –, e há muito não vejo meu trevo de quatro folhas. Nada disso! É que, às vezes, quero apenas registrar um tempo. Um tempo em que o Brasil era Montes Claros. Um tempo em que só através de escritores como João Rosa, Érico Veríssimo, Jorge Amado, Henry Miller ou Adelaide Carraro, conhecíamos o Brasil de fato. Ou um outro mundo, como o de Miller. Li a trilogia "Sexus”, “Plexus”, “Nexus", naqueles anos de chumbo, e descobri que tudo o que a gente ainda não pensava ou tinha apenas visto nos catecismos do Zéfiro, poderia ser feito. Adelaide Carraro era outra danadinha ao escrever. “Eu e o Governador” mostrou que a sacanagem era honesta e a corrupção, como dizia Brecht, obedecia a certas regras. Saudades dos textos e contextos da Adelaide. Tenho que voltar a lê-la. Montes Claros se transformou no centro do universo (ou no cu do mundo), pois tudo estava tão longe, que nem olhar dava. Falar pelo telefone, tinha que esperar a telefonista e algumas horas até completar a ligação. Hoje é tão fávil!. E por aqui tinha o Tiãozinho Comunista com suas idéias e termos, Eduardo Brasil trazendo o mundo através do teatro, Bob (Roberto Luiz) e seus chás muito loucos, bicho. Tinha Rubim, Goiabão, Si Baixinho, Júnior. E Daga, irmã do Brasil. Daga tinha um look diferente. Era meio existencialista, meio francesa, meio Clarice Lispector. Seu olhar quebrava tabus. Lembro de um flerte com ela, no “Espeto de Ouro”, depois de umas batidas de limão inventadas pelo Sinval Amorim. Estava eu e o Ricardo Xarope numa mesa, ela e outra garota, que não me lembro mais quem, no outro extremo do restaurante. Era de madrugada, madrugava, Jaime Cruz e João Lefú trabalhavam, chateados, pelo pouco movimento. Não deu em nada, ficou no flerte comum, como eram comuns estes flertes de antigamente. Nada de ficar, como hoje. Mas nos conhecemos mais através dele. Uma outra vez, a gente já sabia quem era quem, e tinha tomado Optalidon na Praça Coronel Ribeiro. Fomos pra “Mineira”, e ficamos esperando para pedir um Baião de Dois, que nunca era pedido. A cerveja esquentava no copo, e a conversa fluia sobre mil coisas. Doiduras das noites montesclarinas. Falamos sobre Clarice Lispector, sobre o entender. Anos depois, li o entender da escritora. "Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo." Eu era um pálido e magro romântico, tentando passar por um incendiário revolucionário. Não dava certo. Mas existia aquela menina, que morava no inicio do bairro Todos os Santos. Sempre a via de longe. Sorria para ela, ela correspondia. Ela era de estranha e misteriosa beleza. Apareceu-me assim, meio de surpresa, um dia, no “Espeto de Ouro”. Saímos em seu carro, coisa diferente para aqueles dias. Chegou a ir a missa jovem no asilo. Sempre ia me buscar. Passeávamos pela cidade, bebíamos em botecos, comíamos. Abraçávamos e beijávamos. Na verdade, quase namoramos. Depois, ela foi embora. Assim, de repente, como apareceu. Coisas de Montes Claros. Montes Claros era o que era. Transformou-se e ainda se transforma, perde o vínculo com o passado. Na baixada do rio dos Vieira, descendo a Rua Reginaldo Ribeiro e passando ao lado do campo de futebol do seminário, tinha uma dona que recebia a todos em sua casa. Era perto do rio, tinha ainda muito mato por ali. E um pequeno pomar, que era dos padres. Quem nos apresentou a ela (ou melhor, nos levou à raparigagem) foi o Marquinhos, que jogava um futebol de primeira, tinha uma banca de revistas no Alto São João, perto da casa do João Jorge, e resolveu subir mais cedo. A gente ia ali pra conhecer as coisas. Às vezes, a turma formava fila na porta do quarto, todos agitados (ou se agitando) e com a adrenalina lá em cima. Muitos colegas da turma da Praça do Rosário se iniciaram ali, sexualmente. Laia, Ladaia, Sabatana, Ave Maria! O “Chopão”, do Biondi, era um lugar esquisito e agradável. Com aquele montueiro de batidas, era o local em que as garotas de programa iam se divertir após o trabalho. Chegavam lá com amigos e namorados, e não estavam nem aí pra nada. Um dos meus maiores porres aconteceu neste bar, no final de 1972, quando terminamos o Tiro de Guerra. Inventamos de beber todas as batidas dali. No final, ficou eu e o Vasconcelos. No outro dia, acordei procurando a cabeça, que parecia estar no teto. Vasconcelos sumiu por aí, como Tino, Brasil, Itamauri, Manoelzinho Oliveira, Marcelo, Pancho, Telles, Narciso. Agora mesmo, recebo e-mail do Narciso, preocupado, como sempre, com o nosso norte. Na turma da rua Dr. Veloso, na casa do Seu Romeu, tinha João que era exuberantemente gay, numa época que o preconceito era bem maior. Hoje, existe, mas é aceito. Naqueles anos, a coisa era feia, e ele gostava de exibir roupas lindamente confeccionadas, que assustavam a todos. Tinha (e tem) uma simpatia irradiante no rosto e nos gestos. Doidão e amoroso, adorava Woodstock, que assistiu ene vezes, insistindo para que eu assistisse mais e mais. E até hoje eu assisto, em casa. João se esbaldava ao dançar, principalmente ao som de “Ando Meio Desligado” dos Mutantes. Vivia (e vive) sempre num paraíso astral, e a conversa com ele vai desde a revolução de 30 e a tocaia dos Botocudos, passa por Matias Cardoso e as Geraes e chega a música, divina música. É como dar um olhar pelo retrovisor da memória, pela simples curiosidade de ver onde o sol (e o tempo) se esconde. Tem tempo que não nos encontramos, mas a amizade entre nós continua. Ele, como Gil, nos orienta pela constelação do Cruzeiro do Sul. Pela constatação de que a aranha vive do que tece. E pela simples razão de que tudo merece consideração. Ave, Joba!

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