domingo, 20 de maio de 2012

Tristes santos de nossa constelação

Não sou branco ao extremo, sou pardo, resquícios de minha avó Teodomira da Silva. Ou do avô João Alves, que nada tinha a ver com dona Tiburtina, onde a morte e o tiroteio andavam por perto. É certo que esta parte de minha vida ficou um pouco embaçada no espelho da história. Não tenho nem mesmo um olhar dos meus avós maternos, pousando para uma foto souvenir. Apenas os fantasmas caipiras deles, que fingem se assustar com o dono dessa casa quando entra no escritório, assim, de supetão. Assustados, eles fogem como entraram. Saem voando, pela copa das árvores. Deles, porem, através de minha mãe Maria, veio ensinamentos de gente grande. Um deles foi passado por um revolucionário que, fugindo-se sabe lá de que – talvez de Fulgêncio Gomes de Almeida, o oficial de justiça que ia prender Antônio Dó -, passou por Bela Vista muitos, mas muitos anos atrás. Ela o guardou, repassou pra minha mãe que me repassou e eu aos meus filhos. Uma idéia simples, “Amai-vos uns aos outros”. Uma revolucionária idéia, não colocada em prática até hoje. De minhas avós – e tive muitas, mais do que avôs – guardo lembranças múltiplas. Quando penso no carqueja, no sabugueiro e no chá de açafrão, me lembro ainda mais, com saudade ensombrada de Vó Mariinha. Ela, na penumbra da cozinha, naquela casinhazinha tão pequenininha da Pedro Montes Claros. Ela, Belinha, Geralda, Ducarmo, Zé Maria. Das mangas, do pé de mulungu, do araçá, da pinha e das jabuticabas, que dão até hoje, como as mangas, tantas. Embora cismem de cortar estes pés. Quando vejo o xerox amarelado com a caricatura de Tiburtina n’O Malho, me vem nitidamente o sobrado da Rua Curitiba, 1.800, no bairro de Lourdes, em Belo Horizonte. Vem-me a saudade de Vó Lainha, sentada, triste, olhando aquelas flores amarelas que lhe rodeavam e lhe davam aquela coroa de ouro e um quê enigmático ao rosto. Aparece-me nitidamente Tia Quininha, Fred, Tomás, a garagem que servia de quarto para quando eu e meu pai nos hospedávamos lá. E me vem à lembrança de Iraci, de Geraldo e tia Edi, Márcio Hiram, Tereza e Beth. E fica aquele vazio da imagem que dói no meu tio Eudipson... O Natal de 1962 me leva a Belo Horizonte. Deixa-me na Santa Casa, a Praça Hugo Werneck, e vislumbro um quarto onde vi Vó Angélica pela última vez. Ela estava magra, mas o sorriso para o neto era o de mais pura felicidade. Naquele Natal, o último que passamos juntos (ela faleceu dia 09 de janeiro de 1963), meu aniversário foi comemorado na capital. Não me lembro de nenhum presente especial, mas de muito bombom Sonho de Valsa, no apartamento em que Tia Oraide morava com minha avó e Conceição, no edifício Marrocos, a Rua da Bahia. O que me impressionava ali era um fogão que funcionava a energia elétrica, e um macarrão assado que Conceição fazia especialmente para mim. Vale dizer que queimei o dedo diversas vezes, pensando que o fogão estava desligado... O Restaurante Espeto de Ouro me leva até minha avó Lica Vasconcelos. E me dá doces lembranças de Dona Carlota Quadros, minha primeira professora, a quem há anos considero minha Vó do ensinamento. Dona Carlota alta, vistosa, nos ensinando o bê-á-bá no Colégio São José, onde fiquei por 11 anos. Dela tive não tios, mas amigos que, enquanto estiveram aqui, eram inseparáveis: Tadeu (Juquinha) e Dirceu. Dirceu partiu cedo, quando namorava minha prima, Beth, deixando-a triste e chorosa durante vários dias. Juquinha ficou com a gente mais tempo, alegrou nossa vida, nos trouxe canções que são obras primas, como Estradas e Violas: A gente só não é nada quando os pés não estão no chão. Ficar parado esmorece, mas andando acontece. É bom deixar rastros no chão! Ainda vamos reunir todas suas canções em um disco só dele, tenho fé. Quando passo pela Casimiro de Abreu, e vejo aquele pé de goiaba vermelha saindo por cima do muro, sei onde estou: é a casa de Vó Angelina, mais uma das minhas avós. Foi dali que saiu Edvaldo Pinheiro, a quem não sei se trato como filho mais velho ou irmão mais novo. Vó Angelina, a quem peço a bênção e a reza do final de tarde para mim e meus filhos. Foi casada com um homem extraordinário, Escolástico, que gostava da vida e de um papo bom de final de tarde. Quantas vezes não jogamos conversa fora, mas guardamos estas conversas para nós, causos e casos do Matadouro Otani, onde começou a trabalhar com seus 15 anos para sair de lá aposentado. “Sêo” Escolástico partiu para nova jornada em 2001, mas me deixou Diva para olhar. E Vó Angelina, que trabalhou anos e anos com mina outra avó, Lica Vasconcelos, na Afonso Pena, em frente ao posto que vendia querosene e se transformou no Bar Rigudo. E com ela histórias do café Columbia, do Ciço, que era chamado de Cícero; do rei do Sandwiche, Bar Sibéria, Café do Zinho Bolão e Leiteria Celeste, de Zé Priquitim. Todas ali, naquele centro gostoso da cidade. Que, como era doce, se acabou! Vó Angelina me disse certo dia, que houve uma época em que as pessoas viviam mais perto do céu. Isso passou... Até parece que se acabou! Para compensar os dois avôs que tive, mas não conheci, ganhei este mundo de avós. Deus compensa. Vô João Alves da Silva me aparece ainda hoje como fantasma, vez por outra. Quando sinto sua presença – ou de outros desencarnados –, saem rapidim, de esguelha, soslaio. Não ficam para conversas. Não sei se fui eu quem não desenvolvi meu lado mediúnico, ou se eles têm medo de mim. Ou ambos. Ou se eles se manifestam de outro jeito. De vô João Novaes Avelins, o Novaes Velho, ficaram muitas histórias. Inclusive dos jagunços de Tiburtina, depois da Revolução de 1930. Mas Tiburtina morreu louca, com a camisa do marido e seu estoque de morfina. Partiu rumo à solidão total. Novaes Velho partiu antes, feliz, pois a vida vai, mas vem vindo. Eu continuo aqui. Fazendo gestos de silêncio para no acalanto, meu corpo poder dormir inteiro. Não brigo com ninguém, apenas carrego comigo as réstias de minha vida, este feixe de luz que me conduz. As pedras do caminho como ensinou Dylan, devemos deixar para trás. Como os mortos, que não se levantam mais. Mas as lembranças, devemos deixar no peito. Não trancadas. Abertas. Pois elas nos ensinam o futuro.

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