domingo, 20 de maio de 2012

O homem velho não virou estrela. Constelação!

O homem velho plantava morangos em seu quintal. Em um ou dois vasos, não me lembro bem. Um era um penico antigo. Produção pequena, toda direcionada para sua neta. Dois três talvez quatro ou cinco exemplares por ano. Não tão vermelhos. Nem grandes. Miúdos. Mas miúdos só por fora. Por dentro tinha muito mais. Sua neta os saboreava com boca de amor. E respeito. Plantara mangueiras, jabuticabeiras, uma infinidade de pés de fruta em seu quintal ali na Malhada das Almas. Viajara por terras estranhas, vira o que queria e o que não queria. Um dia o homem velho deixou a vida e a morte para trás, como escreveu aquele velho cantor baiano. Agora, o homem velho está no céu. Virou constelação. Tuivaé, como a chamam alguns índios. Tuya, em guarani. Pega o bastão no céu. É sempre em dezembro, na segunda semana, que ele gosta de vir me ver. Ou deixa a mim, vê-lo. Surge ao anoitecer, no lado leste, e nos traz o Verão. Sabe que precisamos desta estação. Ele partiu num agosto, um dia qualquer. Me avisou que estava indo, que tinha chegado a hora, mas não disse que ia virar constelação. Eu estava vestido de branco aquele dia, naquele ano, 1992. Era agosto, começava a política, lembro-me bem. Uma semana antes estivemos juntos, conversamos sobre o céu e a terra, a vida e a morte, bebemos uma cerveja e uma cachaça no Mangueirinha. A gente não sabe a que veio, se é a passeio, se é passagem. Eu não sei nada sobre se preparar para a morte. Quando me acho preparado, vejo-me especialmente despreparado. E, pelo resto da minha vida sei que vou ter que lidar com isto no momento em que acontecer. Eu imagino a estrada onde um dia eu vou parar. Como Luiz diz, ainda que eu mereça, não gostaria de ir diretamente para o céu, quando chegar a hora. Quero me despedir de coisas, dos amigos, das matas, das minhas crianças. Tocar um violão que nunca toquei. Ver minhas terras do sertão que ainda não vi. Naquele dia, soube depois, ele se despedia de mim. Eu estava num restaurante jantando, quando ele passou de repente. Passou direto, olhou para mim, com aquele olhar que só ele sabia dar, o chapéu cinza, meio sujo da vida, os cabelos que tinham a tristeza de néon. Foi na direção do balcão. Achei que ia pediu uma cerveja e um dedal de pinga. Viriatinha? Não! O homem velho apenas sumiu entre as almas presentes enquanto eu, tentando acreditar no que havia visto, coçava os olhos, naquele restaurante da Inhumas, noite quente de agosto. O homem velho partira, deixara a vida sem saudades, sem dívida, sem saldo, sem rival. Foi se despedir. Só mais tarde fiquei sabendo que naquela hora, estava indo. Mas que ficava. Deixou o recado que bastasse eu olhar, nem precisava chamar. Ele, para toda a minha vida, sempre estaria ao lado. Talvez para me lembrar de molhar os vasos onde estão plantados os morangos, miúdos, que sua neta saboreava com boca de amor. E respeito. Talvez só pra falar oi, chegou a hora. Querer esquecer algo, acho que é completamente compreensível. Mas lembrar a ponto de se deixar assombrar, é ruim. Pois o homem velho me visita nas noites de Verão. Não me assombra. Chega quieto, como era seu jeito de chegar. Senta na cama que durmo e entra em meus sonhos. Ai sim, vivemos aventuras de aventurar. Aquelas que não tivemos oportunidade de fazer antes. Foi ele quem me mostrou o sertão. E sendo o sertão plano, pleno, a terra cabe irrisória parte do seu horizonte. Céu de nuvem, de estrelas, céu de sol, céu de lua. Sertão é lugar pra ver céu, me ensinou. Sertão é uma espera enorme, diz Rosa. Enquanto o mundo corre pra lugar nenhum. O homem velho ensinou-me a pescar num destes rios que o progresso da cidade afogou. Com terra e lixo. Ele sabia do brilho intenso das estrelas, da força da lua e do sol quando nascem e morrem nas margens dos rios. E tentou me mostrar, pois conhecia o bem e o mal. Não há vida mais feliz pra se viver, dizia. O homem velho era militante do PCdoB. Quando os militares assumiram o poder, foi contra pegar em armas. A revolução, para ele, deveria ser a de idéias, discussões. Foi contra o partido instalar a guerrilha no Araguaia. Lembro-me dele naquele 31 de março (ou seria primeiro de abril?) queimando livros, jornais, revistas e anotações que recebera da Rússia, num quadradinho ao lado da casa. Era pecado, perguntava eu, ler o que estava ali? Com seu comportamento sereno e o voice-over da existência, apenas olhava. E aquele olhar instila ainda hoje uma esperança profunda de experiência. Foi o homem velho quem me ensinou a andar por aqueles lados, das famílias mais carentes. Foi ele que colocou amor no meu coração. Sabia que o mundo não cabia nas suas mãos. Sem se atropelar com as palavras, sem se perder em turbilhão de arco íris. E quando me vejo cheio de problemas vem ainda hoje a mim e diz palavras sábias: deixa estar! Lembra música. Tinha mente de homem e coração de menino. Era tranquilo, calmo, paciente. Não gritava. Não se desesperava. Era do futuro e não do passado. Pensava com clareza, falava com inteligência. Vivia com simplicidade. Sempre tinha tempo. Não desprezava nenhum ser humano. Mas era cuidadoso. Como não andava a cata de aplauso, jamais se ofendia. Causava a impressão dos vastos silêncios da natureza. O céu. O homem velho era macho, mas não se incomodava de ser um doce com a mulher que amava. E quando ela saia, viajava, levava a alegria do seu rosto. Você não vai sorrir nunca mais? Nunca mais? Só se você deixar, respondia. Eu deixava, mas o sorriso vinha só quando ela voltava. Aí sim, a alegria reinava. Me ensinou que do amor que um dia me foi depositado eu, sozinho, não posso beber mais se não ensina-lo para outros. Mas como é difícil esta missão. Ficou dele suave lembrança de antigamente. O teu jeito menino, a tua voz mansa, o andar calmo. Ainda há no ar o seu aroma. Ainda há lembranças de passeios a Lapa Grande, longe, de trás daquela serra por onde passa boi e passa boiada... Ainda há lembrança de noites de lua, nas noites altas, Sêo Pedro e Arinha e aquele montueiro de gente com Sêo Nivaldo dedilhando a viola e soltando a voz. A gente, timidamente, tentando cantar repentes, folclore, os merengues da vida. Mas o ônibus partiu... Eu vi o homem velho rindo numa curva do caminho de Hebron e ao seu olhar tudo que é cor muda de tom... O homem velho deixa a vida e morte para trás. As coisas migram e ele serve de farol...

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