domingo, 21 de novembro de 2010

Não verás nenhum Paris como este

Está com febre a pracinha construída no final da Avenida Belo Horizonte e no comecinho da Santos Dumont. Não tem nome, pois o vereador que apresentaria um projeto homenageando um cidadão comum ficou com medo de ser excomungado. É a mocnemia em sua fase mais aguda. Coisas da vida montes-clarina.
A luz da pracinha vem do brilho de postes platônicos. Ali tinha um vento sagrado, que acabou. Ali fiéis realizavam rezas, procissões e quermesses, que um padre tresloucado resolveu suspender. Seria a prepotência a serviço de um idealismo vã, a safadeza feita romantismo. Antigamente, Bala Doce lembra bem, era ‘Ora Pros Prates’. Agora, é ‘Ora Pros Nobres’. Hora pros Novaes, necas! Coisas da vida...
Na casa de Maria de Zé Branco, que morava ao lado pracinha, só tem uma mulher ganindo na vitrola. A música dos Beatles não toca mais, e nem casa de Maria de Zé Branco existe. Como não existem João Veio, “Sêo” Belo, Amaral, Humberto e Belzinha, Zé da Farda, Manoelito e “Sêo” Urse. Também inexistem a Cantina do Zezinho Beleza, o bar do Geraldo Bico Doce e o antigo quartel da Policia Rodoviária. Daquele tempo ficou o Socorro Irmãos Abreu, do outro lado da praça que não tem nome, sem lugar para colocar seus carros quebrados... Vomitus cremus!
Reparando bem posso dizer que também as locomotivas que passavam uivando pela cidade, vindo do sertão baiano, são agora só apitos noturnos distantes. Com cuidado, para não atrapalhar o sono ou ser multado por causa da Lei do Silêncio. Lupis vorax!
Estou em plena primaveracidade montes-clarina, mas a primavoracidade incurável do viver norte-mineiro me trás idéias e idéias sobre as doenças da minha cidade. Endepidêmica, a mocnemia é uma doença que vem em ondas como o mar que não temos. Então, não deveria vir. Mas vem, pois a mocnemia é uma doença fértil, em sua débil beleza. Ela entra no coração, faz a gente sentir saudade das ruas, das casas, dos bairros, das pessoas.
Tem gente que não sente saudades por causa da velocidade da sua vida. Ela é tão grande que nem percebem metade das coisas que acontecem em volta. Periga é o tempo passar e ela nem sentir. Vivem em outra.
O mundo pode até começar em Montes Claros, mas para eles continua para muitos lados. Anywhere. A doce capital da República do Pequistão tem seus trejeitos e mungangas, onde passa a finíssima cabrobonha sertaneja, colhida nas beiradas do São Francisco.
Montes Claros tem suas doenças, como a praça sem nome, como a chacrinha do Chorró, a fazenda do São Geraldo.
Montes Claros tem seus ídolos de infância, madureza e velhice, Vicente Alves, José Eymar, Wagner Black e Marcelo Godoy.
É por isso que hoje sofro de mocnemia, a doença congênita da saudade. Acredito também que Carmem Neto, Augusto Vieira, Alberto Senna, Haroldo Lívio, Raquel Chaves, Rafael Reys e Ucho Ribeiro sofram do mesmo mal. O bom que ele vem em ondas...
Lembro que descendo a Rua Ruy Barbosa tinha uma padaria de nome poético, Flor do Sertão. Nunca comi do pão francês fabricado ali, embora namorasse os sonhos que ficavam expostos nas prateleiras, sem nunca tê-los experimentado também. Em frente ficava a casa e a oficina de Godofredo Guedes. Dei conta que a padaria, o padeiro que entregava o pão, a oficina onde um dia foi construído um piano sumiram para sempre. Hoje, o lugar é sem sal, sem graça. As casas existem, mas perderam o tempero, o coentro, o vínculo. Essa descoberta de distraído leva meus pensamentos para outros locais que desapareceram. A pensão Manchester, que existia na Rua Grão-Mogol, entre os hotéis Nobre e Rocha, e onde uma senhora das antigas chamava fregueses e fregueses. Também virou pó. Ou melhor, foi transformado em poeira. Poeira amarela. Virou estacionamento. Até aquele consultório sentimental que existia perto do mercado, sumiu no ar. E a pensão no final da Rua Januária, onde Rays tantas vezes namorou? E a barbearia de Luis, na Padre Augusto? E Luiz Alfaiate, da Dr. Veloso, atrás do Cine São Luiz? E o Cine São Luiz, onde um dia peguei em sua mão? E Luiz do Bar Sibéria? O Colégio Diocesano, que virou supermercado. O prédio da fabrica de tecidos na Coronel Prates, que virou prédio de apertamentos. E as viagens de trem...
Vez em quando cheguei a ir o Bar de Espanha, naquele longínquo Alto Severo, hoje Santo Expedito. Vez em quando fui levado a Gazeta do Norte, que funcionava na Rua Quinze, hoje Presidente Vargas, 164. Vez em quando brincava com Roberto Luiz pelos corredores da farmácia de Mário Versiani Veloso. Só de vez em quando. O prédio da Gazeta ainda está lá, se bem olhado for...
A câmara do meu olhar percorre os principais espaços montes-clarinados, alguns mostrados por meu pai, outros pelos amigos. É a mocnemia. As estradas que nos levam a mergulhar em corações e mentes desta cidade profunda, mais pobre, maior. O cabaré, a praça, os balcões de madeira dos botecos, que hoje quase não existem. O copo de pinga reforçado no fundo para a batida no balcão. Os cantores de final de semana, os amores, os amigos. Os bareszinhos e botecos revelando contradições e angústias.
Ainda ontem pai olhou terno sobre a cidade, voou rasante sobre a cidade, como andorinha. Viu a saudade, a solidão das pessoas. Desnudou os bares da cidade, mas sem ser invasivo. Conversou quantas e quantas vezes com Waldir Macedo, Zé Figueiredo e Miltinho no bar Caiçara, na Rua Padre Augusto. Lá tinha uma placa “Aqui reúnem-se caçadores, pescadores e outros mentirosos”. Nem as histórias sobraram... Nem as ruas estreitas de paralelepípedos. Ou melhor, sobraram as ruas estreitas da cidade. Mas não sobrou Dona Carlota que ensinava o bê a bá.
Montes Claros nunca chegou a ser uma grande boca de mil dentes, como via Mário de Andrade sua São Paulo. Montes Claros vive a trancos e barrancos. E barracos, que se criam cada dia mais, embora o poder público e social não enxergue.
Nesta cidade ganhei minha rugas. Mas estas rugas valem tanto quanto o olhar tímido da morena de cabelos longos, que passa por mim na viela perto da Fafil, e aqui veio estudar. A cidade é apenas mais uma cidade. Para ela, como para outros, não existe uma doença chamada mocnemia. Para muitos, a mocnemia só resta no folclore dos catopés, frio e vazio, mas onde pelo menos eu posso cantar como um passarinho.
Montes Claros situa-se assim: uma cidade que flutua na linha do horizonte, entre o céu e o sertão, onde a eternidade mora e se entretém.
Ora pro nobis!
Ora pro Prates!

Nenhum comentário:

Postar um comentário