domingo, 21 de novembro de 2010

Ela é alguma coisa no caminho, ela sabe

Era um bordel nublado por cigarros e poeira da rua sem asfalto, que cruzava com a Melo Viana. Correia Machado?, pergunta alguém. A janela dava para o quintal daquela casa de encontros onde homens sentavam em mesas antigas, algumas quebradas. Pelas mesas passavam velhas raparigas como o tempo e novas meninas com tempo.
Naquele quintal tinha um pé de goiaba, talvez das brancas, talvez das vermelhas, não dava para se saber qual. Nunca ganhou uma, nunca pediu à dona daquela casa suspeita, embora, nas raras vezes que chegou a janela, viu algumas bonitas, grandes, que enchiam sua boca d’água. Chegava a falar oi com a dona, que tinha uma bunda medonha e uma cara de sonsa. Só a cara.
Abria-se pouco aquela janela da casa. Talvez para não enxergar naquele espaço - que deveria ser o bar do bordel -, homens e mulheres fazendo safadeza. Conhecia algumas das moças. Tinha Iaiá, procurada durante o dia para derrubar vermes de criança, praguejar bicheira, benzer verruga naquele espaço de cidade. Tinha Anita, que gostava de uma trepada e, por tanto gostar, foi parar ali, tão logo passou a lua de mel e ver que o marido não agüentaria seu fogo. Tinha Juve que gostava de ir ao botequim com um vestido de cetim, um pouco solto na cintura e sem roupa de baixo...
Perto dali uns cem metros mal medidos, ficava um botequim, onde os filhos de dona Linda ganhavam a vida. Não tão limpo, não tão sujo, um botequim. No canto, sempre havia um bêbado (Luiz Gastabala?) que rabiscava versos num papel antigo (Rafael?), daqueles de embrulhar carne.
A Melo Viana (Melviana para alguns) ganhou este nome, dizem os historiadores de plantão – e como a cidade os tem -, porque por ali fugiu o então vice-presidente da República, Fernando de Melo Viana, naquele seis de fevereiro de 1930, escapando dos tiros de Dona Tiburtina, João Alves e da tropa.
Para Marquinhos 98 aquele espaço era o paraíso. Marquinhos ganhou o apelido por ser o carnavalesco do Grêmio Recreativo Escola de Samba Destak – e, dizem, se parecer com Joãozinho 30. Consertava nas horas vagas, sofás e hoje aluga DVDs. Segue a vida como o Cônsul Geral do Reino dos Países Baixos dos Morrinhos de Nosso Senhor do Bonfim de Dona Germana.
Para Leya Bloodymary aquilo era o submundo romântico de Montes Claros por onde, vez ou outra passava a caminho da Ladeira Cônego Quirino. Ali perto existiam muitas casas de encontro, algumas melhores, algumas piores, apenas casas de encontro com suas mulheres cansadas, de olhar morto durante o dia, mas que estavam pintadas e putas à noite. Prontas para fazer o que tinha que ser feito.
Naquele Reino dos Países Baixos tinha sacanagem, malícia, putaria. Isto sempre atraiu Leya Bloodymary. Faltava só um show de Kurt Weill. Aquele pedaço de terra de Montes Claros era o lugar de encarar temporais e enfrentar marginais, brigar em bares e saquear corações. E Leya sabia fazer isto muito bem.
No bar da mãe de Marquinhos 98, o Destak, aquele pontinho preto no mapa da cidade, estavam aqueles de vida errante, entregues a qualquer paixão, à deriva dos sonhos prometidos. Ali se podia marcar encontro com o pecador confesso, o clandestino moderado, o traficante sem medo.
Ou com o herói do botequim, que roubava flores no jardim da solidão para oferecer à namorada de um amigo velho – ou novo, não importava nem mesmo se fosse amigo. Mesmo aquele que conhecera ali naquele instante que parecia perdido no local e estava com a mulher ao lado, a mulher que é de seus sonhos naquele momento em que a bebida faz a razão se encontrar com a rota das sereias, as iaras que cantam em nossos rios. É imoral, indecente, fuma demais, bebe demais, ouve Maisa demais. Mas sempre oferecia uma flor – de preferência, uma rosa – àquela que seu coração mandasse. Quem diria que somos limpos e sem defeitos, a imagem e semelhança de Deus?
Ali era o paraíso dos compositores desgarrados e dos poetas malditos. E os começos, meios e fim! Aquele pedaço da cidade era cheio de xavequeiros, vagabundos elegantes, canalhas românticos, do boêmio trovador, e daquele de cabelo calculadamente desarrumado, o michê. Era ali que Leya Bloodymary amava ficar. Era ali que gostava de viver. Leya, último de uma linhagem de heróis da cidade, que tinha até o busto do avô na pracinha. Fica cada vez mais claro que o tempo presente e o tempo passado talvez estejam ambos presentes no tempo futuro, como achava T.S.Eliot.

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