domingo, 21 de novembro de 2010

Noturno nº 5, em Fá Sustenido Maior, Opus 15

Escuto ‘Noturno op. 15 em Fá Maior’ de Chopin, e meu pensamento viaja para quando minha irmã Zelita tocava esta música no piano, na sala da casa da Dr. Velloso. Quantos anos... Que tempo!
Era o tempo em que as mãos de minha mãe me vestiam com a roupa domingueira para participar da Cruzada do Padre Dudu. Isto aconteceu durante anos e anos da minha vida. Suas roupas, feitas no fim de tarde, camisas e calças com a sobra de panos, me protegeram. Alinhavaram a minha alma. Fizeram bainha em meu ego. Coseram meu coração.
Este disco que escuto hoje deve ser para reavivar memórias. Ouço agora a sonata ‘Claire de Lune’ – 1º Movimento, do Beethoven, que Ita também mostrava para a gente, nas manhãs de domingo, no piano da sala, antes do almoço em família. Ou seria nas tardes de sábado, depois de eu ter ido ao catecismo, e chegado com uma baita fome de biscoitos e bolo? É o passado rondando em minha porta feito alma penada...
O lanche de sábado a tarde era diferente. Além de bolo e de pessoas que apareciam na casa, rolava papos que eu ficava de butuca, escutando e comendo. Comia biscoito de farinha, biscoito fofão, biscoito de nata que derretia na boca. Comia rosca feita em casa, bolo de fubá, beiju e, vez por outra, um doce de casca de laranja no melado de cana. Fingia de sonso, como meu amigo Altanir Castro Silva. E enchia o bucho. Amanhã, domingo, vamos pra Lapa Grande? Cheirar orvalho, ver o nascer do sol? Ou Belinha vai matar galinha, fazer farofa, caprichar no feijão tropeiro? Domingo é domingo, dia dos netos, filhos, amigos, companheiros de alegria e lembranças. Depois, a tarde, aí sim, quieta o insossego.
Estas lembranças me fluem talvez por ter passado agorinha mesmo pela Rua Afonso Pena e presenciado a derrubada de um antigo posto de gasolina da Esso, na esquina com a Rua Padre Augusto. Ele ficava em frente ao ‘finado’ Restaurante Mangueirinha e a casa de Maria Vasconcelos Câmara, Tia Lica. Lembro de ter comprado querosene lá, nos anos 1960. Frequentei o lugar com Virgilio de Paula, no início na década de 1980, quando era o ‘Barrigudo’, boteco de João Maurício, irmão de Nenzão. Atualmente tinha virado floricultura. Sempre pensei em morar naquele lugar. Talvez por causa do alpendre. Talvez por causa do lugar, um mundo a parte, entre a beleza natural de árvores nos quintais e a beleza aparente de casas e prédios intermurais. Aquele sobrado parecia poesia.
Descobri que só funciono amando. Assim, escrevo tudo o que vivo e vivi. Gostaria de escrever sobre o que eu não vivi, não estou vivendo, mas acredito que fica forçado. É bom brincar que no que escrevo está meu diário. De ontem, de hoje e de amanhã.
Naqueles anos que Ita tocava ‘Noturno’, pai trabalhava no DER e mãe costurava para fora. Ficava na máquina até bem tarde da noite. Eu, moleque de se jogar fora, caçula, tinha que me virar para ir ao cinema do domingo. Assim, não podia perder a missa nem as ‘contrições’ de Padre Dudu. Contava ponto para ganhar meu cruzeiro.
Certa vez, indo para a Missa das Crianças, domingo pela manhã, achei Cr$ 2,00 na rua. Uma nota amarela, mas que dava para ir ao cinema. E sobrava para a semana! Mas, e o medo de Deus? Aquele dinheiro deveria ser para ele, me falava um anjo da guarda. Outro, apontava que eu tinha achado, e como não havia ninguém na rua, era meu. Mas o outro anjo atazanava a falar no ouvido:: Deus estava me olhando o tempo inteiro, em casa, no banheiro, nos encontros com a turminha da Praça Portugal. Teria que dar o dinheiro na igreja? Todo? Fui ao Cine Teatro Fátima na sessão da manhã e, à tarde, assisti ainda a jogo do Ateneu do Beto, Bichara e João Batista. Se pequei, foi contra a castidade... Mas aí, foi depois.
Na Cruzada de Padre Dudu, aquela turma de calças curtas conheceu o mistério da Santíssima Trindade e outros mistérios mais palpáveis. A gente via as rezas dos adultos, participava de confissões, procissões e cerimônias da semana santa, com velas, terços e a tristeza no olhar. Éramos como se arcanjos esquecidos no canto da sala, só observando.
Naqueles anos que deixaram ‘Claire de Lune’ e ‘Noturno’ na minha mente, a gente ia a Belo Horizonte numa rural. Era uma viagem longa, cansativa, saindo de Montes Claros às cinco da manhã, dando a volta no morro e seguindo estrada afora. Minha irmã Ducarmo sempre passava mal, vomitava.
Em Belo Horizonte ficávamos na pensão de Tia Quininha, onde eu gostava de conversar com Vó Lainha, mãe de Jair e Iraci de Oliveira. Sebastiana era a cozinheira daquele sobrado a Rua Curitiba, 1800, no bairro de Lourdes. Tinha uma garagem, cuja laje era o terraço, e muitas flores amarelas, que parecem com a Carobinha. Por lá viviam vários estudantes. Lembro bem de João Carlos Sobreira e dos filhos de tia Quininha, Fred e Thomas. Naquele casarão fui apresentado ao chiclete de bola, ao cachorro quente e ao cadilac rabo de peixe. Foi lá também que aprendi a guardar dinheiro. Sebastiana tinha uma mala cheia, e me incentivava.
Um trauma que guardei foi de uma viagem de trem. Aos 11 anos quis ir para a capital, mas só descobri que a faria sozinho na última hora. E lá estava eu, na estação ferroviária com uma malinha de roupas e um nó na garganta. Consegui conter o choro por causa da vergonha de chorar indo para Belo Horizonte. Foi uma viagem plácida, agridoce, melancólica. Me mostrei menos interessado nos grandes lances do destino do que nos pequenos ritos do cotidiano. Estava indo para longe do meu abrigo, onde era acostumado e recebia gestos singelos de meus pais, meus irmãos, meus amigos. Onde era protegido. Descobri naquela viagem que meu refúgio não era hermético. Nem eterno. Talvez étero.
Estas lembranças me fluem talvez por ter passado agorinha mesmo pela Afonso Pena e presenciado a derrubada do antigo posto de gasolina. Onde foi o ‘Barrigudo’. Mais um pedacinho da minha cidade está morrendo. Aquele sobradinho que um dia planejei morar, que um dia planejei sentar em seu alpendre, em que um dia planejei escrever coisas e coisas, está derretendo. E não há como não deixar cair uma lágrima por mais este desmanche.
Há anos ouço falar sobre a tentativa de revitalização da parte antiga da cidade. Parece não dar certo. Até a parte não tão antiga assim está sumindo...
Ultimamente, baguncei meu coreto e pendi para o realismo – no que mantive uma única atitude firme: a de não ser mais tão otimista.
Mas, há alguma chance para ter de volta minha cidade?

Nenhum comentário:

Postar um comentário