domingo, 21 de novembro de 2010

O temário das lembranças fala, mas falha, falta

A gente sabe que está ficando velho quando começa um texto: “eu sou do tempo do….” Pronto, falei!
Acho que isso me passou por causa de uma incumbência que o João Rodrigues me passou. Voltei no tempo passado e continuei no atual ao mesmo tempo em que o tempo passava. Agora, vamos em frente.
Como eu dizia, eu sou do tempo em que as crianças não tinham opção por religião. Tinham que fazer curso de catecismo, confessar aos sábados e ir à missa aos domingos, comungar (em jejum de cinco horas) e seguirem católicas.
Eu quase fui para o seminário, iludido que poderia ter poderes sobrenaturais. Não fui santo. Nem sou. Um crente descrente, talvez. Ateu que acredita em Deus. Mas isso não era um problema. Haviam outros…
Por exemplo, um dos grandes problemas era encarar uma confissão e dizer que fez ‘aquilo’ no banheiro. Ou, pior, que participou de um festival de punheta no fundo da casa do Arthur Tutuca Ramos, na Praça Portugal. E não ganhou o primeiro lugar.
Quem papava sempre o premio era o Carlinhos Rebucetê, que via o futuro com a palma da mão. Ele, como Gravatinha, que veio depois para a turma da Igreja do Rosário (Ico, Tutuca, Paulo Bobão, Marciram, Taninha, Rebucetê, Miguel, Gualter, entre tantos), acreditava piamente em seres do outro mundo - sejam ET’s ou fantasmas. Morreu de medo.
Essa coisa, a morte pelo medo, ficou em minha cabeça muito tempo. Alguma coisa transando entre os neurônios, umas joiazinhas de iluminação.
Rebucetê foi o primeiro amigo que vi morto, no caixão, esticado, durinho e frio (dizia Taninha, pois nunca peguei num morto). Aquele velório triste, onde não havia cruz, nem oração, nem recebeu a visita do padre. Ele havia se enforcado.
Um poeta, não só pelo que fazia com as mãos, mas pelo que nos transmitia com suas idéias e viagens cósmicas. Em sua carta de despedida, disse que morria por não conhecer os mistérios da vida e ter medo dos fantasmas que nos habitam.
Também tenho meus medos. Por exemplo, nunca encontrei com um ET. Se desse de cara com um, não sei se seria abusado ou abusaria.
Fantasmas, estes vivem a me rondar - ou a ronronar. Passam, me olham, acham que vão perder tempo comigo, e cascam fora.
Uma vez escrevi para um amigo que havia partido, Edson. Ele estava numa depressão brava, não sei se foi embora por querer ou não. Tomou uns remédios, depois de beber umas. Partiu, simplesmente, não sei pra onde... Não deixou carta, bilhete, nem nada. Talvez, ainda pensasse em acordar dia seguinte. Acordou morto.
No poema que lembrei dele. Melhor, fiz para ele. Dizia que se quisesse me encontrar, não chegasse de uma vez. ‘Não, eu não gostaria de acordar a noite/ e te encontrar feito um fantasma/ a vagar pela casa./ Talvez, quem sabe,/ fosse melhor te encontrar de relance,/ te ver num bar - e não ver,/ coçar os olhos na esquina/ e você se perder na multidão’.
Às vezes, agradeço a Deus por que talvez seja esse modo pelo qual meu medo se redime e eu não me perco.
A turma do Igreja do Rosário era tão unida como o anjo de Georgino Jorge de Souza Junior, Orinella, que não conheci mas escutei casos que, segura a ponta da mesa e mastiga as sílabas em sua língua.
As calças curtas, a rua de paralelepípedos como campo de futebol, a igreja em construção, a turma do Marquinhos, perto do rio Vieira, o campinho pra lá da casa de Carlão, aonde a gente ia passando por uma pinguela sobre o rio, para jogar futebol. Os filhos do José Mário enxertavam nosso time. Que nem sempre vencia.
Às vezes, a gente retroverte no tempo, lembra até do pé de Pitomba, que nascera com Montes Claros na Rua Gonçalves Figueira. Cadê ele? Deve ter sido derrubado.
Por ali, descendo a Gonçalves Figueira, passávamos pela casa do Teixeira Bastos, atravessávamos a ponte do Vieira, tentávamos roubar umas uvas no ‘sitio’ de Antonio Narciso Soares, para depois ir nadar no Pai João. Ainda que infestado de esquistossomose, era ali, naquela piscina natural, que a gente ficava mais alegre do que nas piscinas da Praça de Esportes.
O Vieira também era limpo, a partir de certa altura, no Melo. Tinha poços ótimos. Lembro-me muito da Lajinha, hoje sepultado e selado.
Era um mundo diferente aquele, na década de 1960.
Se a gente se comportasse bem, aos domingos, no Bar Sibéria, na esquina da Dr. Veloso, em frente ao Clube Montes Claros, “sêo” Novaeszinho me dava uma “Caçulinha”, ou guaraná R&C. Às vezes, levava para almoçar no Restaurante Mangueira, na Dr. Santos. Às quintas, porém, tinha encontro marcado com o pai, para tomar a canja de galinha no Mangueirinha, na Afonso Pena com Padre Augusto. Ele tomava sua Brahma e uma pinguinha. Eu, uma Grapette.
No Intermezzo, só fui quando cresci mais e já existia o Espeto de Ouro, ao lado da nossa casa da Dr. Veloso. No Valério, era só em ocasiões especiais. Como quando mãe ganhou um concurso do A.R. A comemoração foi lá.
Mas quando sobrava um dinheirinho da mesada, eu ia mesmo era pro bar e sorveteria Cambuy, em frente ao Cine e Teatro Fátima. Ali me maravilhava com frutas só vistas quando ia a Belo Horizonte. Tinham doces, queijos, presuntos, nozes, castanhas. Meu sonho de consumo naquela época.
Naquele tempo, tínhamos relíquias como Tuia, Parsival de Almeida, Ateneu e Casimiro de Abreu.
Tínhamos os dribles de Manoelito, Manoelzinho, Chinesinho, Jomar e Bispo.
Tínhamos Mané Nunes (Quatrocentos), Sabú, Mundinho Atleta e sessões de cinema no Coronel Ribeiro, São Luiz, Ypiranga ou Fátima.
Foi ali que assisti Yul Brinner e Gina Lolobrigida em ‘Salomão e a Rainha de Sabá’, e Ben Hur, com Charlton Heston. Quando passou Macunaíma, não consegui entrar no São Luiz nem no Coronel Ribeiro. Era barrado pelo Comissário de Menores Zé Idálio. Assisti no Ypiranga, pois ali ele não ia. Depois, consegui gravá-lo numa fita de vídeo e, vez por outra, volto a deliciar-me com Paulo José e Grande Otelo no papel deste anti-herói (?) nacional. O Cine Montes Claros que conhecemos, chegou depois, com som saindo de todas suas paredes.
Pai comprou seu primeiro fusca na Somar, na Carlos Gomes. Foi Tio Geraldo quem estava com a gente quando fomos buscá-lo. Tio dirigiu até os Santos Reis, deu a direção pro meu pai e ele trouxe de volta. Mais nunca largou. Aprendeu assim, num estalo. Rays apelidou o carrinho de ‘calça Lee’, pois descorou com ciúmes do outro fusca mais azul que pai comprou, anos depois.
Dos onze anos estudados no São José, além dos amigos todos que repartem ainda hoje meu coração, ficou a música particular ensinada pelo irmão Jaime Damião:
Frere Jacque, Frere Jacque/
Doure vous, Doure vous/
Solere Martine, solere Martine/
Dim, dim, dom/
Dim, dim, dom. Também, as idas até a escola de datilografia do pai do Luciano Meira, a Remington Rand, para ver se aprendia alguma coisa. Aprendi mesmo com uma Olivetti lá me casa, e até hoje uso somente os dois dedos para digitar ou datilografar.
O temário das lembranças fala, mas falha, falta. Nosso mundo não era tão grande.
Nosso mundo era bem pequeno.
Nosso mundo era nosso.
Não tenho bola de cristal.
Apenas ouço o Tino - tenho pena de nós dois.
Mas é por isso que todos vivem assim.

Nenhum comentário:

Postar um comentário